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terça-feira, 3 de setembro de 2013

A GATA BORRALHEIRA (conto)


A GATA BORRALHEIRA
Irmãos Grimm


Era uma vez um homem muito rico, cuja mulher adoeceu. Esta, quando sentiu o fim aproximar-se, chamou a sua única filha à cabeceira da cama e disse-lhe com muito amor:
-Amada filha, continua sempre boa e piedosa. O amor de Deus há de acompanhar-te sempre. Lá do céu velarei sempre por ti.
E dito isto, fechou os olhos e morreu.
A menina ia todos os dias para junto do túmulo da mãe chorar e regar a terra com suas lágrimas. E continuou boa e piedosa. Quando o inverno chegou, a neve fria e gelada da Europa cobriu o túmulo com um manto branco de neve. Quando o sol da primavera o derreteu, o seu pai casou-se com uma mulher ambiciosa e cruel que já tinha duas filhas igualmente vaidosas e com muito ódio no coração.
Mal a pobre órfã as conheceu percebeu que nada de bom podia esperar delas, pois logo que a viram disseram-lhe com desprezo:
- O que é que esta moleca faz aqui? Vai para a cozinha, que é lá o teu lugar!!!
E a madrasta acrescentou:
- Têm razão, filhas. Ela será nossa empregada e terá que ganhar o pão com o seu trabalho diário, se quiser comer, nem pense que terá vida boa aqui nessa casa
. - disse à menina.
Tiraram-lhe os seus lindos vestidos, vestiram-lhe um vestido muito velho, pegaram seus sapatos e deram-lhe tamancos de madeira para calçar.
- E agora já para a cozinha! - disseram elas, rindo.
E, a partir desse dia, a menina passou a trabalhar arduamente, desde que o sol nascia até altas horas da noite: ia buscar água ao poço, acendia a lareira, cozinhava, lavava a roupa, costurava, esfregava o chão...
À noite, extenuada de trabalho, não tinha uma cama para descansar. Deitava-se perto da lareira, junto ao borralho (cinzas), razão pela qual puseram-lhe o apelido de Gata Borralheira.
Os dias se passavam e a sorte da menina não se alterava. Pelo contrário, as exigências da madrasta e das suas filhas eram cada vez maiores.
Um dia, o pai ia para a cidade fazer compras e perguntou às duas enteadas o que queriam que ele lhes trouxesse.
- Lindos vestidos! - disse uma.
- Jóias! - disse a outra.
- E tu, filhinha, que queres ganhar? - perguntou-lhe o pai.
- Um ramo verde da primeira árvore que encontrares no caminho de volta falou a menina.
Terminada as compras, ele comprou os vestidos para as enteadas e as jóias que tinham pedido e no caminho de regresso cortou para a filha um ramo da primeira árvore que encontrou, de uma oliveira que estava viçosa e exuberante.
Ao chegar em casa, deu às enteadas o que elas haviam pedido e entregou à sua filha um galho de oliveira, árvore que produz azeitonas. Ela correu para junto do túmulo da mãe, enterrou o ramo na terra e chorou tanto que as lágrimas o regaram. O raminho começou a crescer e tornou-se uma bela árvore.
A menina continuou a ir ao túmulo da mãe todos os dias e sempre se emocionava e chorava com saudade quando o visitava; certa vez ouviu uma bonita pomba branca dizer-lhe:
- Não chores mais, minha querida. Lembra-te que, a partir de agora, cumprirei todos os teus desejos!
Pouco depois o rei anunciou a todo o reino que ia dar uma festa durante três dias para a qual estavam convidadas todas as jovens que queriam casar-se, a fim de que o príncipe herdeiro pudesse escolher a sua futura esposa entre todas as moças do reino.
Imediatamente as duas filhas da madrasta chamaram a Gata Borralheira e disseram-lhe:
- Penteia-nos e veste-nos, pois temos que ir ao baile do príncipe para que ele possa escolher qual de nós duas será a sua futura esposa.
A Gata Borralheira obedeceu humildemente. Mas quando viu as duas luxuosamente vestidas, desatou a chorar e suplicou à madrasta que também a deixasse ir ao baile, pois queria participar daquele baile junto às outras moças.
- Ao baile, tu??? - respondeu ela - Já te olhastes no espelho? - Era só o que me faltava, uma desengonçada Gata Borralheira no Baile Real!!!

Mas a menina insistia em querer ir também à festa, então a madrasta, face à insistência da Gata Borralheira, acrescentou, ao mesmo tempo que atirava um pote de lentilhas para as cinzas:
- Está bem! Se separares todas essas lentilhas em duas horas, irás conosco.
A menina saiu para o jardim a chorar e lembrando-se do que a pomba lhe tinha dito, expressou o seu primeiro desejo:
- Dócil pombinha, rolinhas e todos os passarinhos do céu, por favor venham ajudar-me a separar as lentilhas que estão misturadas às cinzas para que eu possa ir ao baile.
- Os grãos bons no prato, e os maus no papo - foi o que a menina ouviu como resposta.

Então voaram até ela duas pombinhas brancas, seguidas de duas rolinhas e de uma nuvem de passarinhos que entraram pela janela da cozinha, e começaram a bicar as lentilhas. E muito antes de terminarem as duas horas concedidas, separaram as lentilhas. Entusiasmada, a menina foi mostrar à madrasta o prato com as lentilhas escolhidas. 
- Muito bem. – disse a madrasta, com ironia - Não é que você conseguiu...- Mas que vestido vais usar? E além disso, tu não sabes, dançar!  Será melhor ficares em casa que é o teu lugar.
Desconsolada, a Gata Borralheira começou a chorar, ajoelhou-se aos pés da madrasta e voltou a suplicar-lhe que a deixasse ir ao baile.
- Está bem! - disse ela com cinismo - Dou-te outra oportunidade.
E voltou a espalhar dois potes de lentilhas sobre as cinzas.
- Se conseguires escolher as lentilhas numa hora, irás ao baile.
A doce menina saiu a correr para o jardim e gritou:
- Dóceis pombinhos, rolinhas e todos os passarinhos do céu, venham ajudar-me a separar novamente as lentilhas para que possa ir ao Baile Real.
- Os grãos bons no prato, e os ruins no papo - foi a resposta que ouviu.
De novo, duas pombas brancas entraram pela janela da cozinha, depois as pequenas rolas e um bando de passarinhos, e pic-pic-pic escolheram-nas e voaram para sair por onde haviam entraram, muito antes de ter passado uma hora.
A menina logo correu e mostrou à madrasta as lentilhas escolhidas, mas de nada lhe serviu.
- Deixa-me em paz com as tuas lentilhas! Vais ficar em casa e pronto! Está decidido e ponto final! Não me aborreças mais com isso e vá trabalhar porque tem muita louça para lavar e chão para esfregar.
Virou-lhe as costas e chamou as filhas, todas rindo e se divertindo com a ousadia da pobre menina em querer ir ao baile.
Quando já não havia ninguém em casa, a Gata Borralheira foi junto ao túmulo da mãe, debaixo da oliveira, e gritou:
- Arvorezinha. Toca a abanar e a sacudir. Atira ouro e prata para eu me vestir!
A pomba que lhe tinha oferecido ajuda, apareceu sobre um ramo e, estendendo as asas, transformou os seus farrapos num lindíssimo vestido de baile e os seus tamancos em luxuosos sapatos bordados a ouro e prata. Assim deslumbrante, a moça foi em direção ao palácio onde estava começando a festa, quando entrou no salão de baile, todos os presentes se admiraram diante de tamanha beleza. Mas as mais surpreendidas foram as duas filhas da madrasta que estavam convencidas que seriam as mais belas da festa e invejaram e olharam com desdém aquela moça tão ricamente vestida e que chamava a atenção de todos os olhares. Porém, nem elas, nem a madrasta ou o pai reconheceram a Gata Borralheira naquele traje magnífico.
O príncipe ficou fascinado ao vê-la. Tomou-a pela mão e os dois começaram o baile. Durante toda a noite esteve ao seu lado e não permitiu que mais ninguém dançasse com ela.
Chegado o momento de se despedirem, o príncipe ofereceu-se para acompanhá-la, pois ardia de desejo por saber quem era aquela jovem e onde morava. Mas ela deu uma desculpa para se retirar por um momento e aproveitou sua breve distração para abandonar o palácio e saindo a correr e deixou em baixo de uma árvore o seu formoso vestido e os sapatos que usava.
A pomba, que estava à sua espera, pegou neles com as suas patinhas e desapareceu na escuridão da noite. Ela voltou a vestir o vestido cinzento sujo de fuligem, o avental e os tamancos e, como de costume, deitou-se junto à chaminé e adormeceu. No dia seguinte, quando se aproximou a hora do início do segundo baile, esperou até ouvir partir a carruagem com a madrasta e as filhas e correu para junto da árvore:
- Arvorezinha. Toca a abanar e a sacudir. Atira ouro e prata para me vestir!
E de novo apareceu a pomba e a vestiu com um vestido ainda mais lindo que o da noite anterior e calçou-lhe uns sapatos que pareciam de ouro puro. A sua aparição no palácio causou sensação maior ainda do que da primeira vez. O próprio príncipe, que a esperava impaciente, sentiu-se ainda mais deslumbrado. Pegou-lhe na mão e, de novo, dançou com ela toda a noite como havia feito no dia anterior.
Ao chegar a hora da despedida, o príncipe voltou a oferecer-se para acompanhá-la, mas ela insistiu que preferia voltar sozinha para casa. Mas desta vez o príncipe seguiu-a. De repente, parecia que tinha sido engolida pelo chão. Em vez de entrar em casa, a jovem Gata Borralheira, de vergonha, escondeu-se atrás de uma frondosa oliveira que havia no jardim. O príncipe continuou a procurá-la pelas redondezas, até que decepcionado regressou ao palácio, entristecido por não tê-la encontrado.
A Gata Borralheira abandonou então o seu esconderijo, e quando a madrasta e as filhas chegaram ela já tinha tirado as vestes bonitas e colocado os seus trapos velhos.
No terceiro dia, quando o pai fustigou o cavalo e a carruagem se afastou com a sua a esposa e enteadas, a menina aproximou-se de novo da árvore e disse pela terceira vez:
- Arvorezinha. Toca a abanar e a sacudir. Atira ouro e prata para me vestir!
E a pomba, uma vez mais, trouxe-lhe um vestido de sonho, de seda com aplicações de suntuoso chale e uns sapatos bordados a ouro para os seus pequeninos e delicados pés. E depois, colocou-lhe sobre os ombros uma capa de veludo dourado. Estava mais linda do que nunca.
Quando entrou no salão de baile, a belíssima Gata Borralheira foi recebida com uma exclamação de assombro por parte de todos os presentes.
O príncipe apressou-se a beijar-lhe a mão e a abrir o baile, não se separando dela toda a noite.
Pouco antes da meia-noite, a jovem despediu-se do príncipe e pôs-se a correr. O príncipe não conseguiu alcançá-la mas encontrou na escadaria um dos sapatinhos dourados que ela tinha perdido durante a sua precipitada fuga. Apanhou-o e apertou-o contra o coração. Já estava apaixonado pela moça do baile.
Na manhã seguinte, mandou os seus mensageiros difundirem por todo o reino que se casaria com aquela que conseguisse calçar o precioso sapato.
Depois de todas as princesas, duquesas e condessas o terem inutilmente experimentado, ordenou aos seus emissários que o sapato fosse provado por todas as jovens, qualquer que fosse a sua condição social e financeira.
Quando chegaram à casa onde vivia a Gata Borralheira, a irmã mais velha insistiu que devia ser ela a primeira a experimentar e, acompanhada pela mãe que já a imaginava rainha, subiu ao quarto, convencida que lhe servia. Mas o seu pé era demasiado grande. Então a mãe, furiosa, obrigou-a a calçá-lo à força, dizendo-lhe:
- Embora te aperte agora, não te preocupes. Pensa que em breve serás rainha e não terás que andar a pé nunca mais.
A jovem disfarçou a dor que sentia e subiu para a carruagem, apresentando-se diante do filho do rei.
Embora ele tenha notado de imediato que aquela não era a bela desconhecida que conhecera no baile, teve que considerá-la como sua prometida. Montou-a no seu cavalo e foram juntos dar um passeio. Mas, ao passar diante de uma frondosa árvore, viu sobre os seus ramos duas pombas brancas que o advertiram:
- Olha para o pé da donzela, e verás que o sapato não é dela...
O príncipe desmontou e tirou-lhe o sapato. E ao ver como o pé estava roxo e inchado, percebeu que tinha sido enganado. Voltou à casa e ordenou que a outra irmã experimentasse o sapato.
A irmã mais nova subiu ao quarto, acompanhada da mãe, e tentou calçá-lo. Mas o seu pé também era demasiado grande.
E a mãe obrigou-a a calçá-lo à força, dizendo-lhe:
- Embora te aperte agora, não te preocupes. Pensa que em breve serás rainha e não terás que andar a pé nunca mais.
A filha obedeceu, enfiou o pé no sapato e, dissimulando a dor, apresentou-se ao príncipe que, apesar de ver que ela não era a bela desconhecida do baile, teve que considerá-la como sua prometida. Montou-a no seu cavalo e levou-a a passear pelo mesmo sítio onde levara a sua irmã. Ao passar diante da árvore onde estavam as duas pombas, ouviu-as de novo adverti-lo:
- Olha para o pé da donzela, e verás que o sapato não é dela...
O príncipe tirou-lhe o sapato e ao ver que tinha o pé ainda mais inchado que a irmã, percebeu que também ela o tinha enganado e voltou à casa para devolver a fingida.
- Aqui vos trago esta impostora. E dai graças a Deus por não ordenar que sejam ela e a irmã castigadas. Mas se ainda tendes outra filha, estou disposto a dar-vos nova oportunidade e eu mesmo lhe calçarei o sapato.
- Não. Não temos mais filhas - disse a madrasta.
Mas o pai acrescentou:
- Bem, a verdade é que tenho uma filha do meu primeiro casamento, a qual vive conosco. É ela que faz a limpeza da casa e por isso anda sempre muito suja. É a Gata Borralheira.
- Falei que todas as jovens sem exceção devem experimentar o sapato e essa moça também deverá fazê-lo, portanto, tragam-na à minha presença. Eu mesmo lhe calçarei.

As irmãs, com má vontade foram obrigadas a chamar a moça que chegou cabisbaixa entrando na sala, envergonhada por estar com aqueles trapos sujos na frente do príncipe, mas ele a recebeu com gentileza e pediu que se aproximasse para experimentar o sapatinho dourado.
A Gata Borralheira tirou um dos pesados tamancos e calçou o sapato sem o menor esforço. Coube-lhe perfeitamente.
O príncipe, maravilhado, olhou bem para ela e reconheceu a formosa donzela com quem tinha dançado.
- É você a minha amada desconhecida!  Finalmente te encontrei! - exclamou ele maravilhado 

- Só tu serás minha dona e senhora.
O príncipe, radiante de felicidade, sentou-a ao seu lado no cavalo e tomou o mesmo caminho por onde tinha ido com as duas impostoras. Pouco depois, ao aproximar-se da árvore onde estavam as pombas, ouviu-as dizer:
- Continua, Príncipe , a tua cavalgada, pois a dona do sapato já foi encontrada!
As pombas pousaram sobre os ombros da jovem e os seus farrapos transformaram-se no deslumbrante vestido que ela tinha levado ao último baile.
Chegaram ao palácio e de imediato foi celebrado o casamento. Quando os habitantes do reino souberam da forma como o cruel e desnaturado pai, a malvada madrasta e as duas filhas tinham tratado aquela que agora era a sua adorada princesa, começaram a desprezá-los de tal modo que eles tiveram que abandonar o país.
A princesa, fiel à promessa feita à mãe, continuou a ser piedosa e bondosa como sempre e continuou a visitar o seu túmulo e a orar debaixo da árvore, testemunha de tantas dores e alegrias, mas agora já não chorava mais.