A CRIANÇA E O MUNDO VIRTUAL
Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar. Na era
da informação, a invisibilidade é equivalente à morte.
O que aprendi com o GOOGLE é que nunca saberei o que
deveria saber.
As pessoas estão cada vez mais frias e com
sentimentos artificiais. Acredito que uma causa disso sejam as redes sociais.
Elas tornam tudo aparentemente mais fácil, mas isso não é verdade.
Zigmunt Bauman.
A família é substituída facilmente pelo celular que passou a ser o
companheiro favorito, a aquisição aguardada e predileta, número um de nove
entre dez adolescentes. O Brasil é um dos países que mais tem aparelhos
celulares (sexto em número de smartphones com aproximadamente 39 milhões) e o
segundo no mundo em usuários de wattszap, (aproximadamente 120 milhões), e,
infelizmente, também ocupa o lugar em que o número de roubos desses objetos de
desejo cresce vertiginosamente dia a dia.
Os jovens ganham de presente de pessoas próximas (geralmente pais e
avós) esse artefato que tem uma variedade de jogos para se distrair, tirar
fotografias, oferecendo respostas às suas curiosidades, permite mandar
mensagens e fotos para os amigos e ainda serve para os seus pais saberem onde
estão, aliás, diga-se de passagem, essa é a grande cilada quando os adultos
presenteiam as crianças com esses aparelhos, acreditando que serão atendidos
quando ligarem para seus filhos. Realmente um presente muito útil (?).
Conheço famílias em cujas casas a convocação para a reunião da família é
feita através de wattszap: - O almoço está na mesa! Seguido de outra
mensagem, essa mais enérgica: - Venha logo!!! A resposta vem na sequência, acompanhada
de uma série de caretas e desenhos expressando fúria e impaciência (emojis). O
jovem contrariado senta à mesa com seu celular que também participa da refeição
familiar, isso quando esse gesto não é imitado também pelos adultos e aí a mesa
de refeições passa a ser uma espécie de reunião de trabalho, cada qual se
relacionando virtualmente e o humano que poderia (já nem digo deveria) surgir, não
tem chance de se expressar, ou seja, estamos virtualizando as relações
familiares.
Um escritor respeitado e criterioso como o professor Mário Sérgio
Cortella comenta em um dos seus livros (1) o efeito nocivo da mídia atuando
como corpo docente, alertando para a deformação ética e da cidadania através da
exposição maciça desde muito cedo na vida das crianças e que atinge seu ápice
na adolescência.
Ensina o mestre: “As sociedades ocidentais contemporâneas
transferiram, pouco a pouco, os cuidados com as crianças das famílias para as
escolas; a formação e informação cognitiva, moral, sexual, religiosa, cívica,
etc., passou a ser entendida como uma tarefa essencial do espaço escolar, em
substituição a uma convivência familiar cada vez mais restrita em qualidade e
quantidade”.
Se pensarmos que os smartphones
e os tablets fazem parte de nossa vida há muito pouco tempo e admitirmos como
nossa existência anterior era restrita sem sua aquisição, cogitar atualmente uma
vida sem esses aparelhos é também muito difícil. Paralelamente, definir que as
crianças não precisam desse acesso ou protelar seu uso é mais complicado ainda,
falta coragem para frear esse uso maciço e abusivo, mas essa é uma decisão que
os pais precisam refletir e decidir. Decisão essa, diga-se de passagem,
intrasferível.
A rapidez dessas alterações é tão intensa que a imensa maioria das
crianças que ainda não foram alfabetizadas regularmente nas escolas, já
assistiram certamente a mais de 5.000 horas de televisão, com uma média de 3
horas diárias de exposição às telas (televisão, celulares, tablets, etc.), ou
seja, uma média de 1.000 horas/ano. Como essa exposição é cada vez mais
precoce, uma criança com seis anos já teve um exagero de informações com cores,
jogos, personagens e uma série de estímulos. É bom que não se confunda
conhecimento com informação, o primeiro é seletivo e não solapa a criatividade,
enquanto informação é cumulativa e corre o risco de ser completamente
esquecível (2).
Pesquisas revelam que famílias que possuem celulares tem uma grande
resistência em impedir que seus filhos também utilizem esses aparelhos cada vez
mais cedo, os quais além de dominar suas funções, ganham seu próprio aparelho, antes
mesmo de serem alfabetizados ou de conquistarem autonomia em tarefas básicas,
como amarrar os cadarços dos tênis ou se vestirem sem ajuda. A questão não é
sobre o seu uso, mas no abuso e na precocidade em seu manuseio.
O termo “nomofobia” é o medo
irracional de ficar sem o seu telefone celular ou ser incapaz de usar o telefone
por algum motivo, como a ausência de um sinal, o término do pacote de dados ou
a carga da bateria, um temor de ficar incomunicável. Isso gera ansiedade,
sudorese, taquicardia e até tremores, essas sensações,
juntas ou isoladas, são mais comuns do que se pode imaginar. Crianças e jovens
apresentam esse distúrbio cada vez mais e atualmente existem clínicas
especializadas em desintoxicar portadores dessa perturbação, pois é um
transtorno de ansiedade, classificado como transtorno fóbico-ansioso na Classificação
Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID
10). A condição já atinge cerca de 20% da população
mundial, segundo o Instituto Nacional de Saúde americano. Portanto, não é tão inócuo
assim oferecer esses aparelhos para “distrair” as crianças enquanto
estamos ocupados. Tudo leva a crer que existe uma tendência à adição (vício).
Distúrbios de sono são
cada vez mais comuns, atingindo um número imenso de pessoas em todo o mundo.
Uma porcentagem considerável desses problemas pode estar relacionada às imagens
registradas através das telas desses aparelhos celulares pelos usuários antes
de dormir, pois, a luminosidade ativa a liberação de cortisol que provoca o
despertar com sua consequente reação estimulante, agindo como um “espantador
do sono”, deixando a mente excitada e sem a tranquilidade necessária para
conciliar o sono, que não vem ou permanece superficial.
Interferir
nesse processo requer mudança de hábitos, o que nem sempre é fácil, mas necessário
porque nos acostumamos com esse abuso e nos adaptamos a ele de uma maneira
completamente contraproducente. Que atire o primeiro smartphone quem nunca deu
uma conferida nas mensagens ou nas imagens do Instagram antes de dormir.
Noites
mal dormidas e insones prejudicam as manhãs subsequentes. Na escola as crianças
dormem nas primeiras aulas ou ficam muito mal humoradas, porque o seu corpo não
descansou
suficientemente à noite, justamente, porque a mente foi muito estimulada com
informações e projeções imagéticas, que demoram para se desfazer, adiando o
sono. A vigília é prolongada e a mente ainda não se desligou [JCNM1] completamente. Dormem por exaustão,
mas com uma qualidade deficiente.
A
neurociência explica que nossa mente registra através dos estímulos visuais e
sonoros de forma direta e indireta (como no caso da visão colateral)
praticamente tudo que presenciamos durante o dia, então por um mecanismo de
armazenamento, selecionamos algumas imagens que ficam registradas, as outras
são esquecidas. Infelizmente não temos muito critério ou escolha do que será
retido e o que será “deletado”, dessa forma, à noite ao dormirmos, nossa mente
faz uma espécie de “check-list” daquilo que deverá ser armazenado e
algumas imagens, mesmo desagradáveis e negativas, ainda muito excitantes,
continuam vivas na nossa memória e nos impede de dormir profundamente (sono
REM), permanecemos em um sono superficial (sono NÃO REM) que impede esse
relaxamento fisiológico (3).
Seria
adequado que as crianças fossem para cama mais cedo, priorizando um ritmo de
sono de dez horas e que não tivessem contato com imagens de televisão,
celulares, tablets e similares.
Contos
de fada são bons substitutos dessas imagens estereotipadas, pois, através dessa
narrativa os personagens já induzem um processo criativo que a criança elabora
e molda do seu jeito e configura um perfil próprio para cada situação. Essas
imagens inventadas pela própria criança enquanto ouvem as estórias, acalmam a
mente e tranquilizam o sono, não excitam como as outras que já chegam prontas e
com repertório próprio.
Os adultos também relutam com o sono e
escolhem muitas vezes aquele horário noturno para colocar seus e-mails em dia,
ou atualizar seus contatos nas redes sociais, ativando um neurotransmissor
(dopamina) que é responsável por levar informações para várias partes do corpo,
provocando a sensação de prazer e aumentando a motivação, o cérebro então busca
essa sensação novamente, de forma incessante.
Adiamos um tempo precioso para que a mente possa descansar depois de um dia estafante em que o corpo precisa relaxar e a mente se aquietar. Abdicar de tudo que libera dopamina seria, então, uma maneira de regular esse “vício” e retomar controle de como gastamos nosso tempo. Sem essa pausa não conseguimos elaborar e refletir sobre os embates que tivemos durante o dia e sem esse repouso, simplesmente adoecemos.
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Médico na Escola
Dr José Carlos Machado
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