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sexta-feira, 11 de novembro de 2022

A CRIANÇA E O MUNDO VIRTUAL - artigo





A CRIANÇA E O MUNDO VIRTUAL

Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar. Na era da informação, a invisibilidade é equivalente à morte.

O que aprendi com o GOOGLE é que nunca saberei o que deveria saber.

As pessoas estão cada vez mais frias e com sentimentos artificiais. Acredito que uma causa disso sejam as redes sociais. Elas tornam tudo aparentemente mais fácil, mas isso não é verdade.

Zigmunt Bauman.

A família é substituída facilmente pelo celular que passou a ser o companheiro favorito, a aquisição aguardada e predileta, número um de nove entre dez adolescentes. O Brasil é um dos países que mais tem aparelhos celulares (sexto em número de smartphones com aproximadamente 39 milhões) e o segundo no mundo em usuários de wattszap, (aproximadamente 120 milhões), e, infelizmente, também ocupa o lugar em que o número de roubos desses objetos de desejo cresce vertiginosamente dia a dia.

Os jovens ganham de presente de pessoas próximas (geralmente pais e avós) esse artefato que tem uma variedade de jogos para se distrair, tirar fotografias, oferecendo respostas às suas curiosidades, permite mandar mensagens e fotos para os amigos e ainda serve para os seus pais saberem onde estão, aliás, diga-se de passagem, essa é a grande cilada quando os adultos presenteiam as crianças com esses aparelhos, acreditando que serão atendidos quando ligarem para seus filhos. Realmente um presente muito útil (?).

Conheço famílias em cujas casas a convocação para a reunião da família é feita através de wattszap: - O almoço está na mesa! Seguido de outra mensagem, essa mais enérgica: - Venha logo!!! A resposta vem na sequência, acompanhada de uma série de caretas e desenhos expressando fúria e impaciência (emojis). O jovem contrariado senta à mesa com seu celular que também participa da refeição familiar, isso quando esse gesto não é imitado também pelos adultos e aí a mesa de refeições passa a ser uma espécie de reunião de trabalho, cada qual se relacionando virtualmente e o humano que poderia (já nem digo deveria) surgir, não tem chance de se expressar, ou seja, estamos virtualizando as relações familiares.

Um escritor respeitado e criterioso como o professor Mário Sérgio Cortella comenta em um dos seus livros (1) o efeito nocivo da mídia atuando como corpo docente, alertando para a deformação ética e da cidadania através da exposição maciça desde muito cedo na vida das crianças e que atinge seu ápice na adolescência.

Ensina o mestre: “As sociedades ocidentais contemporâneas transferiram, pouco a pouco, os cuidados com as crianças das famílias para as escolas; a formação e informação cognitiva, moral, sexual, religiosa, cívica, etc., passou a ser entendida como uma tarefa essencial do espaço escolar, em substituição a uma convivência familiar cada vez mais restrita em qualidade e quantidade”.

Se pensarmos que os smartphones e os tablets fazem parte de nossa vida há muito pouco tempo e admitirmos como nossa existência anterior era restrita sem sua aquisição, cogitar atualmente uma vida sem esses aparelhos é também muito difícil. Paralelamente, definir que as crianças não precisam desse acesso ou protelar seu uso é mais complicado ainda, falta coragem para frear esse uso maciço e abusivo, mas essa é uma decisão que os pais precisam refletir e decidir. Decisão essa, diga-se de passagem, intrasferível.

A rapidez dessas alterações é tão intensa que a imensa maioria das crianças que ainda não foram alfabetizadas regularmente nas escolas, já assistiram certamente a mais de 5.000 horas de televisão, com uma média de 3 horas diárias de exposição às telas (televisão, celulares, tablets, etc.), ou seja, uma média de 1.000 horas/ano. Como essa exposição é cada vez mais precoce, uma criança com seis anos já teve um exagero de informações com cores, jogos, personagens e uma série de estímulos. É bom que não se confunda conhecimento com informação, o primeiro é seletivo e não solapa a criatividade, enquanto informação é cumulativa e corre o risco de ser completamente esquecível (2).

Pesquisas revelam que famílias que possuem celulares tem uma grande resistência em impedir que seus filhos também utilizem esses aparelhos cada vez mais cedo, os quais além de dominar suas funções, ganham seu próprio aparelho, antes mesmo de serem alfabetizados ou de conquistarem autonomia em tarefas básicas, como amarrar os cadarços dos tênis ou se vestirem sem ajuda. A questão não é sobre o seu uso, mas no abuso e na precocidade em seu manuseio.

O termo “nomofobia” é o medo irracional de ficar sem o seu telefone celular ou ser incapaz de usar o telefone por algum motivo, como a ausência de um sinal, o término do pacote de dados ou a carga da bateria, um temor de ficar incomunicável. Isso gera ansiedade, sudorese, taquicardia e até tremores, essas sensações, juntas ou isoladas, são mais comuns do que se pode imaginar. Crianças e jovens apresentam esse distúrbio cada vez mais e atualmente existem clínicas especializadas em desintoxicar portadores dessa perturbação, pois é um transtorno de ansiedade, classificado como transtorno fóbico-ansioso na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID 10). A condição já atinge cerca de 20% da população mundial, segundo o Instituto Nacional de Saúde americano. Portanto, não é tão inócuo assim oferecer esses aparelhos para “distrair” as crianças enquanto estamos ocupados. Tudo leva a crer que existe uma tendência à adição (vício).

Distúrbios de sono são cada vez mais comuns, atingindo um número imenso de pessoas em todo o mundo. Uma porcentagem considerável desses problemas pode estar relacionada às imagens registradas através das telas desses aparelhos celulares pelos usuários antes de dormir, pois, a luminosidade ativa a liberação de cortisol que provoca o despertar com sua consequente reação estimulante, agindo como um “espantador do sono”, deixando a mente excitada e sem a tranquilidade necessária para conciliar o sono, que não vem ou permanece superficial.

Interferir nesse processo requer mudança de hábitos, o que nem sempre é fácil, mas necessário porque nos acostumamos com esse abuso e nos adaptamos a ele de uma maneira completamente contraproducente. Que atire o primeiro smartphone quem nunca deu uma conferida nas mensagens ou nas imagens do Instagram antes de dormir.

Noites mal dormidas e insones prejudicam as manhãs subsequentes. Na escola as crianças dormem nas primeiras aulas ou ficam muito mal humoradas, porque o seu corpo não descansou suficientemente à noite, justamente, porque a mente foi muito estimulada com informações e projeções imagéticas, que demoram para se desfazer, adiando o sono. A vigília é prolongada e a mente ainda não se desligou [JCNM1] completamente. Dormem por exaustão, mas com uma qualidade deficiente.

A neurociência explica que nossa mente registra através dos estímulos visuais e sonoros de forma direta e indireta (como no caso da visão colateral) praticamente tudo que presenciamos durante o dia, então por um mecanismo de armazenamento, selecionamos algumas imagens que ficam registradas, as outras são esquecidas. Infelizmente não temos muito critério ou escolha do que será retido e o que será “deletado”, dessa forma, à noite ao dormirmos, nossa mente faz uma espécie de “check-list” daquilo que deverá ser armazenado e algumas imagens, mesmo desagradáveis e negativas, ainda muito excitantes, continuam vivas na nossa memória e nos impede de dormir profundamente (sono REM), permanecemos em um sono superficial (sono NÃO REM) que impede esse relaxamento fisiológico (3).

Seria adequado que as crianças fossem para cama mais cedo, priorizando um ritmo de sono de dez horas e que não tivessem contato com imagens de televisão, celulares, tablets e similares.

Contos de fada são bons substitutos dessas imagens estereotipadas, pois, através dessa narrativa os personagens já induzem um processo criativo que a criança elabora e molda do seu jeito e configura um perfil próprio para cada situação. Essas imagens inventadas pela própria criança enquanto ouvem as estórias, acalmam a mente e tranquilizam o sono, não excitam como as outras que já chegam prontas e com repertório próprio.

 Os adultos também relutam com o sono e escolhem muitas vezes aquele horário noturno para colocar seus e-mails em dia, ou atualizar seus contatos nas redes sociais, ativando um neurotransmissor (dopamina) que é responsável por levar informações para várias partes do corpo, provocando a sensação de prazer e aumentando a motivação, o cérebro então busca essa sensação novamente, de forma incessante.

Adiamos um tempo precioso para que a mente possa descansar depois de um dia estafante em que o corpo precisa relaxar e a mente se aquietar.  Abdicar de tudo que libera dopamina seria, então, uma maneira de regular esse “vício” e retomar controle de como gastamos nosso tempo. Sem essa pausa não conseguimos elaborar e refletir sobre os embates que tivemos durante o dia e sem esse repouso, simplesmente adoecemos.



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