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terça-feira, 30 de abril de 2024







FÁTIMA, a fiandeira (conto grego)
 
Regina Machado
O violino cigano e outros contos de mulheres sábias
Ilustrações - Joubert
Editora Seguinte - 2017 - São Paulo
130 páginas

 

Há muito tempo, num lugar muito distante daqui, havia um casal de fiandeiros que tinha uma filha chamada Fátima. Desde menina ela aprendeu com seus pais o ofício de fiar, e quando chegou aos dezoito anos era uma fiandeira de grande experiência.Chegou o dia em que seu pai foi fazer uma viagem pelas ilhas do mar Mediterrâneo e resolveu levar Fátima com ele.

– Quem sabe – ele disse – no meio da viagem você poderá encontrar um bom moço para se casar, que seja de família honrada, que seja digno de você.

Fátima ficou feliz com o convite do pai e preparou-se para partir. Algum tempo depois ela estava num navio, com seu pai e uma tripulação bem treinada, rumo ao mar Mediterrâneo. Quando ancoravam em alguma ilha, o pai descia para fazer seus negócios. Enquanto isso Fátima ficava sentada num canto do navio, olhando o sol até que ele desaparecesse no horizonte, com o pensamento naquele bom moço, de família honrada e digno de se casar com ela, que ela poderia vir a conhecer.

Um dia, o céu começou a escurecer e densas nuvens provocaram uma tempestade terrível em alto-mar. O navio em que Fátima e seu pai viajavam foi aos poucos se tornando um brinquedo frágil levado pela fúria das ondas gigantes. Por mais valentes que fossem os marinheiros, eles não conseguiram dominar a força do mar assanhado pelo vento e pela chuva infernal. Depois de algum tempo de luta sem trégua, o navio foi engolido pela tormenta e todos a bordo morreram no mar, menos Fátima, que foi parar numa praia perto da cidade de Alexandria.

Quando ela acordou e abriu os olhos numa manhã de sol, demorou para se lembrar quem era, até que se deu conta de tudo o que havia acontecido. Percebeu então que estava num lugar desconhecido, sozinha, e, antes que pudesse refazer-se, viu que umas pessoas se aproximavam. Era uma família de tecelões que moravam naquele lugar e estavam passeando pela praia. Quando souberam sua história, convidaram-na para viver com eles em sua casa. Como não tivesse para onde ir, ela aceitou e logo começou a aprender um novo ofício, a arte de tecer. Não passou muito tempo até que ela se tornasse uma excelente tecelã. Fátima estava tão feliz nesse seu trabalho que era como se tivesse se esquecido do terror pelo qual havia passado alguns anos antes.

Um dia, ao entardecer, Fátima caminhava pela praia, perdida seus pensamentos, quando um navio de piratas ancorou ali, em busca de escravas para vender no mercado da cidade de Istambul. Assim que avistaram a jovem completamente distraída, com os olhos no crepúsculo, eles a prenderam e a levaram para o navio. Quando deu por si, Fátima estava outra vez navegando em alto-mar, sem saber para onde a levavam, até que um dia ela se viu num grande mercado, amarrada a um poste, à espera de um comprador. De novo ela estava sozinha, num lugar desconhecido, sem ter a menor ideia de qual seria seu destino dali para a frente. Com a cabeça baixa, abandonada à sua triste sorte, Fátima ouviu a voz de um homem que se aproximou dela. Era um fabricante de mastros de navio, que estava andando pelo mercado em busca de uma escrava para comprar para a mulher. Quando viu o ar desamparado de Fátima, resolveu comprá-la, pensando que assim ele poderia contribuir de alguma maneira para melhorar a sorte da jovem.

O homem levou Fátima com ele para sua casa, mas quando chegou lá, uma desgraça havia acontecido. Enquanto ele se ausentara, um bando de ladrões havia roubado todo o seu dinheiro, todos os seus bens. Agora ele não podia mais ter escrava nenhuma, e disse a Fátima que ela podia ir embora. Acontece que a jovem tinha ficado muito agradecida porque o homem a tinha livrado dos piratas. Ela resolveu ficar morando com ele e a mulher, já que não tinha mesmo para onde ir. Logo passou a aprender um novo tipo de trabalho. Em pouco tempo ela conhecia tão bem a técnica de construir mastros de navio que pôde ajudar o homem a reconstruir sua fortuna. Ele lhe deu a liberdade e lhe propôs sociedade nos negócios, que iam cada vez melhor. Novamente Fátima se sentiu feliz e deixou para trás as lembranças duras do seu cativeiro e todas as difíceis perdas do passado.

Até que um dia o homem a chamou e pediu-lhe que levasse um carregamento de mastros para as distantes ilhas de Java, onde poderiam realizar um negócio extremamente vantajoso para eles, graças a alguns comerciantes locais seus conhecidos que estariam aguardando por ela. Um grande navio foi equipado e Fátima subiu a bordo junto com a tripulação, numa manhã ensolarada. Pode parecer inacreditável, mas o navio foi colhido por um furacão no meio da viagem e rapidamente afundou.

Quando acordou numa praia da costa chinesa, algum tempo de pois, Fátima começou a se lembrar com muito custo do que havia acontecido com ela. Percebeu que mais uma vez estava só, num lugar estranho, entregue a seu destino. Então ela se desesperou e ficou se perguntando por que, toda vez que sua vida tomava um rumo, acontecia uma desgraça tão grande que a deixava sem nada. Ela não se conformava e não compreendia o sentido do seu caminho pelo mundo. Exasperada, ela andava pela praia de um lado para o outro, sem nenhuma resposta para suas indagações. Foi então que surgiu diante dela um arauto anunciando que se alguma mulher estrangeira estivesse ali naquele momento, deveria apresentar-se ao imperador. Isso porque muitos séculos atrás havia sido feita uma profecia que dizia que um dia uma mulher vinda de terras distantes faria uma tenda para o imperador. De tempos em tempos o imperador enviava seus arautos aos quatro cantos da China, para ver se a tal mulher havia chegado.

Quando Fátima ficou sabendo, por meio de um intérprete, o que o arauto estava dizendo, pediu para falar com o imperador.

Assim que a viu, o imperador perguntou-lhe sem muitos rodeios se ela seria capaz de fazer uma tenda.

– Creio que sim – respondeu a jovem.

– Muito bem, diga-me o que é necessário para iniciar seu trabalho — disse o imperador prontamente.

— Bem, em primeiro lugar eu preciso de cordas que sejam bem resistentes — disse Fátima.

O imperador chamou seus serviçais e ordenou que providenciassem variados tipos de cordas para que a jovem pudesse escolher a mais adequada. Fátima examinou cuidadosamente as cordas que lhe foram trazidas, e achou que nenhuma delas era forte o suficiente para seu propósito. Foi então que ela se lembrou do tempo lá longe em que havia sido fiandeira, e logo lhe veio à memória sua antiga habilidade de fiar. Por isso ela pôde fiar as cordas de que precisava para fazer a tenda.

Quando as cordas ficaram prontas, o imperador perguntou.

– Do que mais você precisa?

– Agora eu necessito de um tecido especial, bem forte – respondeu Fátima.

O imperador apresentou-lhe telas e tecidos das mais diversas qualidades, mas ela não encontrou nada que lhe agradasse. Foi então ela se lembrou do tempo lá longe em que havia sido tecelã, e logo lhe veio à memória sua antiga habilidade de tecer. Por isso ela pôde confeccionar a tela perfeita para realizar sua tenda.

– E agora o que falta? – perguntou o imperador cada vez mais curioso enquanto acompanhava os passos do trabalho.

– Finalmente, preciso de estacas – respondeu Fátima.

Nada do que o imperador lhe trouxe serviu para seu objetivo. Foi então que ela se lembrou do tempo recente em que havia sido fabricante de mastros de navio e, com grande habilidade, fabricou firmes estacas.

Depois de ter produzido com as próprias mãos os materiais necessários, Fátima só precisou se lembrar de todas as tendas que havia visto até então na sua vida, nos diversos lugares por onde tinha passado. Ela fez uma tenda magnífica para o imperador, que ficou completamente satisfeito com aquela maravilha.

– Mulher – disse o imperador-, você realizou a profecia que meu povo esperava há tantos séculos. Você pode pedir qualquer coisa como recompensa. O que você desejar lhe será dado.

– Eu não quero nada — respondeu Fátima. – Meu único desejo é ficar morando aqui na China e recomeçar minha vida. Eu não tenho ninguém no mundo e nenhum lugar para onde ir.

É claro que o imperador consentiu, e Fátima passou a viver na China.

Foi assim que depois de algum tempo ela conheceu um bom moço, de uma família honrada, digno de se casar com ela. Do grande amor que os uniu nasceram muitos filhos.

Fátima sempre contava sua história para os filhos e ao final ela dizia:

– Tudo aquilo que aconteceu na minha vida, e que no momento me pareceu uma desgraça, contribuiu, na realidade, para minha felicidade final





Médico na Escola Dr. José Carlos Machado www.mediconaescola.com. @antroposofiaemdia. Acompanhe também nosso canal no YouTube: https://www.youtube.com/user/medicinaescolar

UMA FÁBULA SOBRE A FÁBULA - Malba Tahan (conto)






UMA FÁBULA SOBRE A FÁBULA - conto árabe

Malba Tahan (recontado por Regina Machado)
O violino cigano e outros contos de mulheres sábias
Regina Machado
Ilustrações - Joubert
Editora Seguinte - São Paulo, 2017
130 páginas



Allah Hu Akbar! Allah Hu Akbar! (Deus é o maior).
Deus criou a mulher e junto com ela criou a fantasia. 
Foi assim que uma vez a Verdade desejou conhecer um palácio por dentro e escolheu o mais suntuoso de todos, onde vivia o grande sultão Haroun Al-Raschid. Vestiu seu corpo apenas com um véu transparente e pouco depois chegou à porta do magnífico palácio. Assim que o guarda apareceu e viu aquela bela mulher sem nenhuma roupa, ficou desconcertado e perguntou quem ela era. E a Verdade respondeu com firmeza: — Eu sou a Verdade e desejo encontrar-me com seu senhor, o sultão Haroun Al-Raschid. O guarda entrou e foi falar com o grão-vizir. Inclinando-se diante dele, disse: — Senhor, lá fora está uma mulher pedindo para falar com nosso sultão, mas ela só traz um véu completamente transparente cobrindo seu corpo. — Quem é essa mulher? — perguntou o grão-vizir com viva curiosidade. — Ela disse que se chama Verdade, senhor — respondeu o guarda. O grão-vizir arregalou os olhos e quase gaguejou: — O quê? A Verdade em nosso palácio? De jeito nenhum, isso eu não posso permitir. Imagine o que ia ser de mim e de todos aqui se a Verdade aparecesse diante de nós? Estaríamos todos perdidos, sem exceção. Pode mandar essa mulher embora, imediatamente. O guarda voltou e transmitiu à Verdade a resposta do seu superior. A Verdade teve que ir embora, muito triste. 
Acontece que... Deus criou a mulher e junto com ela criou a teimosia. 
A Verdade não se deu por vencida e foi procurar roupas para vestir. Cobriu-se dos pés à cabeça com peles grosseiras, deixando apenas o rosto de fora e foi direto, é claro, para o palácio do sultão Haroun Al-Raschid. Quando o chefe da guarda abriu a porta e encontrou aquela mulher tão horrivelmente vestida, perguntou seu nome e o que ela queria. Com voz severa ela respondeu:  — Sou a Acusação e exijo uma audiência com o grande senhor deste palácio. Lá se foi o guarda falar com o grão-vizir e, ajoelhando-se diante dele, disse: — Senhor, uma estranha mulher envolvida em vestes malcheirosas deseja falar com nosso sultão. — Como é que ela se chama? — perguntou o grão-vizir. — O nome dela é Acusação, Excelência. O grão-vizir começou a tremer, morto de medo: — Nem pensar. Já imaginou o que seria de mim, de todos aqui, se a Acusação entrasse nesse palácio? Estaríamos todos perdidos, sem exceção. Mande essa mulher embora imediatamente. Outra vez a Verdade virou as costas e se foi tristemente pelo caminho. 
Ainda dessa vez ela não se deu por vencida. E isso porque... Deus criou a mulher e junto com ela criou o capricho. 
A Verdade buscou pelo mundo as vestes mais lindas que pôde encontrar: veludos e brocados, bordados com fios de todas as cores do arco-íris. Enfeitou-se com magníficos colares de pedras preciosas, anéis, brincos e pulseiras do mais fino ouro e perfumou-se com essência de rosas. Cobriu o rosto com um véu bordado de fios de seda dourados e prateados e voltou, é claro, ao palácio do sultão Haroun Al-Raschid. Quando o chefe da guarda viu aquela mulher deslumbrante como a Lua, perguntou quem ela era. E ela respondeu, com voz doce e melodiosa: — Eu sou a Fábula e gostaria muito de encontrar-me, se possível, com o sultão deste palácio. O chefe da guarda foi correndo falar com o grão-vizir, até esqueceu de ajoelhar-se diante dele e foi logo dizendo: — Senhor, está lá fora uma mulher tão linda, mas tão linda, que mais parece uma rainha. Ela deseja falar com nosso sultão. Os olhos do grão-vizir brilharam: — Como é que ela se chama? — Se entendi bem, senhor, o nome dela é Fábula.  — O quê? — disse o grão-vizir, completamente encantado. — A Fábula quer entrar em nosso palácio? Mas que grande notícia! Para que ela seja recebida como merece, ordeno que cem escravas a esperem com presentes magníficos, flores perfumadas, danças e músicas festivas. As portas do grande palácio de Bagdá se abriram graciosamente, e por elas finalmente a bela andarilha foi convidada a passar. Foi desse modo que a Verdade, vestida de Fábula, conseguiu conhecer um grande palácio e encontrar-se com Haroun Al-Raschid, o mais fabuloso sultão de todos os tempos.