O CORAÇÃO DO MENINO E O MENINO DO CORAÇÃO (conto)
Mia Couto
A menina sem palavra - (Histórias de Mia Couto) - livro
Boa Companhia/Editora Schwarcz S.A. - São Paulo - 2015
O miúdo nasceu com as acertadas aparências. Só em altura de ensaiar primeiras
marchas lhe notaram o defeito, o enviesamento nos pezinhos, cada um não sendo como cada
qual. Sobre as pegadas estrábicas a avó vaticinou:
- Este vai caminhar para dentro dele mesmo.
Depois outra malconveniência se somou: o rapaz engrumava as falas, tatebitudo. Os
outros não entendiam mais que cuspes e assobios, até os parentes o escutavam com riso
parvo de quem finge concordância. Não há medo maior que não se entender humana a voz de
outra humana pessoa.
A mãe conduziu a criança ao hospital. O doutor lhe mergulhou o ouvido no peito e se
ensurdeceu de tanto coração. O menino tinha o pulsar à flor da pele. O médico parecia
entusiasmado com o inédito do caso.
- Necessitamos que ele fique, para mais exames…
- Nem pensar. Esse menino entrou comigo, há de sair comigo.
-Mas a senhora nem faz ideia… temos de encontrar um nome para a doença dele.
-Como um nome?
-Essa doença: eu tenho que lhe encontrar um nome!
- Mas esse nome, será que esse nome vai curar a doença dele?
O médico sorriu. Ai, essa gentinha simples, tão exímia em ser pensada pelos outros. E
assim, sorriso descaindo no lábio, ficou olhando mãe e filho se afastarem no corredor. O
menino levava em sua mão, descaída como pétala, uma carta que ele mesmo redigira. Queria
ter dado ao doutor esse papelinho que sua inabilidade enchera de letrinha. Com desatenta
ternura, a mãe lhe tirou o papel dos dedos e o lançou no latão. A mania desse mirabolhante!
Deveria ser outra dessas tantíssimas cartas que o tontinho fingia escrever para sua apaixonada
priminha.
-Você ainda se carteia com Marlisa?
O menino negou com veemência. A mãe sacudiu a cabeça. Enfim, quanto ela se
esforçara em vão. Valera a pena insistir ensinamentos em quem nunca aprendera? Também
Marlisa, a visada sobrinha, jamais cedera a abrir tais cartas. Nem valia a pena espreitar a
caligrafia do atarantonto. Uns andam na lua. No caso, a lua é que andava nele.
Certa vez, o rabiscador daqueles engatafunhos desabou no fundo do tempo. O menino
faleceu, em azulidão de pele, todo frio como se nenhuma luz dele tivesse vontade. Os médicos
acorreram para levar o corpo e lhe administrarem a extrema-autópsia. Lhe arrancaram o
coração, o universátil músculo, enormíssimo como um planeta carnudo. O órgão ficou em
vitrina, exposto às ciências e aos noticiários. Os cardiologistas disputavam, em sucessivos
colóquios, um apropriado nome para baptizar a anormalidade.
Passaram-se os dias, anónimos. Era um fim de tarde, a prima Marlisa, ao arrumar as
poeiras da casa, deparou com o monte de inúteis cartas. Sopesou-as antes de as lançar ao
fogo. Hesitou por um segundinho: o moço sabia abecedar uma simples linha? Pelo sim pelo
talvez, ela se aventurou a espreitar o primeiro envelope. E ali se sentou em espanto, ruga na
fronte, mãos enrolando um demorado cabelo. Ficou horas, no assentado degrau. Aquilo não
eram cartas mas versos de lindeza que nem cabiam no presente mundo. Marlisa inundou a
tristeza, tingiram-se as letras. Quanto mais a prima primava em seguir leitura mais rimava com
nenhuma outra mulher, toda ela fora do contexto de existir. A moça se apaixonava
postumamente?
Mas ali, arremessada na escada, nem Marlisa imaginava o que, no simultâneo tempo,
se passava com o coração do primo que Deus e a ciência guardavam. Pois que, na vitrina
gelada do Hospital, mal se resgou o primeiro envelope, o coração do primo deflagrou em
sobressalto. Um oh se estilhaçou nos visitantes. E à medida que Marlisa, mais longe que mil
paredes, ia desfolhando versos, o coração mais se desembrulhava, tremelusco-fuscando. Até
que, daquele novelo vermelho, se viu desprender um braço, mais adiante um pé e a redondez
de um joelho e mais argumentos que faziam valer o facto: aquele coração estava em flagrante
serviço de parto! E se confirmava, vinda das entranhas do útero cardíaco, uma total recém
criança.
E quando, finalmente, o parto se desfechou se viu que o menino nascera igual ao seu
progenitor de peito. Fazia medo como um quimicava o outro a papel chapado. Em tudo se
semelhavam menos no desenho do pé. Os pés do nascido eram divergentes, como quem
viesse para procurar, fora de si, gente de outras estórias.
Vocabulário:
Enviesamento: ato ou efeito de (se) enviesar. (De enviesar+-mento)
Enviesar: fazer ou pôr em viés, cortar em oblíquo.
Exímia: que destaca pelas suas qualidades, que revela grande destreza, habilidade, perfeição.
Veemência: com ímpeto, com intensidade, com força à hora de expressar opiniões ou
sentimentos.
Acaloradamente ou apaixonadamente.
Visada: que se citou ou mencionou, referido.
Primar: ser o primeiro, destacar-se, esmerar-se. (De primo+-ar).
Flagrante: praticado no próprio momento em que se é surpreendido, evidente, incontestável
Divergente: discordante, que diverge.
Quimicava: um e outro se entendem
Médico Escolar - Dr. José Carlos Neves Machado - www.mediconaescola.com. Acompanhe também nosso canal no YouTube: https://www.youtube.com/user/medicinaescolar / @antroposofiaemdia
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Médico na Escola
Dr José Carlos Machado
www.mediconaescola.com
Acompanhe tampem nosso canal no You Tube! https://www.youtube.com/user/medicinaescolar