PRECOCIDADE
INFANTIL
“Tudo nessa vida demora
sempre mais do que imaginamos, menos a própria vida”.
“O tempo é a maneira que
tem a natureza de não permitir que tudo aconteça de uma única vez” (1).
PRECOCE
– é o que ocorre antes do que deveria; antes do tempo ideal; trata-se de algo
que ainda não se encontra amadurecido; prematuro; diz-se daquele que
desenvolveu certas habilidades ou capacidades antes da idade normal.
MADURO
– é aquele que está pronto; totalmente desenvolvido; o fruto se encontra pronto
para ser consumido; diz-se da pessoa ponderada; equilibrado (2).
Essas
definições norteiam e dão uma imagem quando nos confrontamos com aquilo que
parece ser tão comum, mas que, necessariamente, não deve ser encarado como um
processo normal, ou seja, a “precocidade infantil”.
Até
por uma questão fisiológica e ligada à corporalidade física, situações que
antecedem a própria capacidade orgânica trazem suas consequências, nem sempre sem
inconvenientes, por exemplo, quando oferecemos aos bebês alimentos inadequados,
como carnes, exigimos que seu metabolismo trabalhe com uma maior intensidade
forçando a um processo digestivo em transformar a proteína heteróloga da carne
de vaca em proteína humana, a fim de ser devidamente incorporada no corpo da
criança, pois bem, esse ato trivial ocasiona gastos energéticos e capacidades
que nem todas as crianças pequenas estão devidamente aptas, muitos problemas
poderiam ser evitados se essas inadequações fossem mais bem observadas.
Na
esfera anímica essas inadequações apresentam matizes mais intensos, já que o
corpo astral é mais facilmente observado e certas habilidades que a criança
apresenta não se adequam, não combinam, digamos assim, com sua idade biológica,
existe um descompasso, um desequilíbrio e isso, geralmente, traz prejuízos
alguns significativos, enfim, o que aparentemente pode ser considerado
interessante e até estimulado pelos adultos ao redor não é tão inócuo assim, de
fato é algo com o qual deveríamos nos preocupar.
O
escritor Mia Couto traz em seu conto “O rio da Quatro Luzes” (3), a história de
um menino que não queria ser mais criança e se queixa aos desconcertados pais
que queria envelhecer rápido, não querendo mais ser criança; “que valia ser criança se lhe faltava a
infância?”. O menino passa a cismar com isso e vai perguntar ao avô, já que
os pais não sabem como agir nessa situação, o que precisaria fazer para ser
morto, pois tinha cansado de viver. O avô lhe propõe uma troca, pediria a Deus
que fizesse uma permuta, como as leis do tempo deveriam levá-lo primeiro que o
neto, mas como o velho gostava muito da vida, não se incomodaria em trocar com
a criança a vez de morrer. Com isso a criança ficou mais sossegada, mas todo
dia ia ver o avô, ver se este continuava firme e rijo e se Deus já lhe havia
acenado alguma consideração. O avô dizia que estava também aguardando uma
resposta, mas que nesse intervalo, enquanto esperava a resolução divina, o
menino deveria se distrair com brincadeiras e “fosse meninando”, então, o avô contou à criança os lugares
secretos de sua infância, perseguiram borboletas, adivinharam pegadas de bicho
e o menino sem saber foi se iniciando nos territórios da infância, junto com o
avô, que foi rejuvenescendo com a companhia do menino. Uma vez o velho foi
falar com os pais da criança e ordenando que o neto saísse falou: “criancice é como amor, não se desempenha
sozinha. Faltava aos pais serem filhos, juntarem-se miúdos com o miúdo”. E
se despedindo dos filhos sentiu-se mal e percebeu que sua hora já se
aproximava, antes, porém ainda chamou o filho e revelou: “Diga a meu neto que eu menti. Nunca fiz pedido nenhum a nenhum Deus”. Esse
conto traz a imagem de como é importante a postura do adulto que acompanha a
criança que atento, percebe a inadequação que começa a se apresentar e tenta
transformar esse processo em algo mais produtivo, mais criativo, revitalizando
o seu etérico, dando forma a algo que está inapropriado, envelhecido em um
corpo infantil. A imagem de um velho em um corpo infantil é adequada quando
pensamos em crianças precoces, pois vão se pré-ocupando com questões que não
lhe dizem respeito, assumindo tarefas que ainda não lhe deviam ser oferecidas,
isso tudo tem o seu preço: desgaste do corpo etérico, que se desvitaliza e com
suas consequências físicas: dificuldades no sono, inapetência ou sobrepeso,
ansiedade, dificuldade de concentração, instabilidade de humor, obstipações
intestinais, enfim, alterações significativas no ritmo e na fisiologia do corpo
que recebe e reage a essas influências externas”.
Em
relação à manutenção do ritmo e adequá-lo na rotina da criança e da própria
família é uma tarefa que exige uma grande dedicação, principalmente na
atualidade. Temos uma dificuldade em nos concentrarmos naquilo que estamos
fazendo, varia de indivíduo para indivíduo, mas todos sofrem influências do
meio externo, ora mais, ora menos, ficamos expostos a uma série de solicitações
que temos que interagir e isso, logicamente, interferem negativamente no nosso
ritmo de vida. Por exemplo, nas festas do ano, quando nossa alma está em pleno
Natal, que já começou em outubro, já é anunciado o Carnaval, que mal termina e
já é substituído pela Páscoa que precisa ceder seu espaço para as festas
juninas que são igualmente antecipadas. As comemorações que necessitam de um
tempo, de um ritmo, de um intervalo importante para que sejam assimiladas, ficam
sobrepostas nos apelos comerciais que, simplesmente, invadem e atropelam esse
respirar. Isso tudo precisa ser cuidado pelos adultos em benefício das crianças
e deles próprios, isso merece atenção. Essa inadequação, essa precocidade em
trazer novas informações, novas emoções, interferem e acabam “sufocando” pelo
excesso, um processo que precisaria de um tempo hábil, com começo, meio e fim,
mas essa superposição invade e traz ansiedade e a alma não fica com a
experiência plena de se apropriar daquilo que pode ser muito interessante, mas
que mal começa, já termina, porque tem de ceder a vez para algo que já está
eminentemente próximo. Para a criança a expectativa de aguardar por algo que
vai chegar deveria ser entendido como algo motivador e não como fator
angustiante como imaginam alguns pais, que atuam desse modo protetor porque
eles próprios não conseguem lidar com suas ansiedades, projetam a mesma
angústia nas crianças e compensam isso de um modo equivocado, pois, a criança
não pode ter o desconforto de esperar por nada, não lhes são ensinadas que a
frustração existe e que nem sempre conseguimos tudo o que queremos exatamente
na hora que desejamos, enfim, existem consequências, limitações e exigências
que temos que passar todos sem exceção. Mas a precocidade infantil, na
contramão dessa corrente, vem corroborar a mensagem que a criança pode tudo,
que atitudes que ela já apresenta são válidas e devem ser estimuladas,
infelizmente, na maioria das vezes, para alimentar o narcisismo dos pais. Seus
filhos já sabem de tantas coisas, possuem tantos talentos e dizem coisas tão
importantes, enfim são especiais, o orgulho dos pais, são precoces, em outras
palavras, são crianças que estão perdendo a infância; isso não deveria ser
considerado normal, encarado com a costumeira benevolência de algo sem
importância, embora seja cada vez mais comum é um grande desafio para os pais,
educadores, terapeutas, todos condutores dessas crianças em seu percurso,
passando por suas diversas fases, cada uma de uma vez, no seu devido tempo, ou
como dizia o poeta: “ Só mesmo um velho
para descobrir, detrás de uma pedra, toda a primavera” (4).
José Carlos Neves Machado.
Pediatra,
com especialidade em Homeopatia, Medicina Chinesa e Acupuntura (UNIFESP),
Antroposofia (ABMA), pós-graduação em Psicanálise da Criança (Inst. Sedes
Sapientiae), vice-presidente da ABMA Nacional (2006/2010), presidente da
ABMA/SP (2010/2012), fazendo parte da equipe organizadora do Curso de Medicina Pedagógica (SAB) e do Curso de Formação em Pedagogia Waldorf VIVER, trabalha como médico escolar, orientação de pais e educadores (Escola de Pais),
em consultório particular e no Terapeuticum Solarium (Cuiabá),
palestrante sobre temas ligados à família, desenvolvimento infantil, educação e Antroposofia e orientador
e terapeuta em escolas que adotaram a pedagogia Waldorf em Cotia/SP; Lauro de Freitas (BA) e Cuiabá/MT, presencialmente e prestando consultoria em diversas escolas pelo Brasil.
(1)
Exercícios
d’alma / A Cabala
como sabedoria em movimento – Bonder, Nilton – páginas 29 e 32 – Editora
Rocco – Rio de Janeiro, 2010.
(2)
Dicionário
Caldas Aulete da Língua Portuguesa – L&PM – Rio de
Janeiro, 2007.
(3)
O
fio das missangas / Contos – Couto, Mia – Cia das Letras –
terceira reimpressão – página 111 – São Paulo, 2010.
(4)
Toda
Poesia – Leminski, Paulo – Cia das Letras – página 16 – São
Paulo, 2013.
(5) Pais ou reféns dos filhos? - Brenman, Ilan - Papirus 7 mares, São Paulo, 2021.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Médico na Escola
Dr José Carlos Machado
www.mediconaescola.com
Acompanhe tampem nosso canal no You Tube! https://www.youtube.com/user/medicinaescolar