A FOGUEIRA (conto)
Mia Couto
A velha estava sentada na esteira, parada na
espera do homem saído no mato. As pernas sofriam
o cansaço de duas vezes: dos caminhos idosos e dos
tempos caminhados.
A fortuna dela estava espalhada pelo chão: tigelas, cestas, pilão. Em volta era o nada, mesmo o
vento estava sozinho.
O velho foi chegando, vagaroso como era seu
costume. Pastoreava suas tristezas desde que os
filhos mais novos foram na estrada sem regresso.
“Meu marido está diminuir”, pensou ela. “É uma
sombra.”
Sombra, sim. Mas só da alma porque o corpo
quase que não tinha.
O velho chegou mais perto e
arrumou a sua magreza na esteira vizinha. Levantou o rosto e, sem olhar a mulher, disse:
— Estou a pensar.
— É o quê, marido?
— Se tu morres como é que eu, sozinho, doente e sem
as forças, como é que eu vou lhe enterrar? Passou os dedos magros pela palha do assento e
continuou:
— Somos pobres, só temos nadas. Nem ninguém não
temos. É melhor começar já a abrir a tua cova, mulher.
A mulher, comovida, sorriu:
— Como és bom marido! Tive sorte no homem da
minha vida.
O velho ficou calado, pensativo. Só mais tarde a
sua boca teve ocasião:
— Vou ver se encontro uma pá.
— Onde podes levar uma pá?
— Vou ver na cantina.
— Vais daqui até na cantina? É uma distância.
— Hei de vir da parte da noite.
Todo o silêncio ficou calado para ela escutar o
regresso do marido. Farrapos de poeira demoravam
o último sol, quando ele voltou.
— Então, marido?
— Foi muito caríssima — e levantou a pá para
melhor a acusar.
— Amanhã de manhã começo o serviço de covar.
E deitaram‑se, afastados. Ela, com suavidade,
interrompeu‑lhe o adormecer:
— Mas, marido...
— Diz lá.
— Eu nem estou doente.
— Deve ser que estás. Você és muito velha.
— Pode ser — concordou ela. E adormeceram.
Ao outro dia, de manhã, ele olhava‑a intensamente.
— Estou a medir o seu tamanho. Afinal, você é
maior que eu pensava.
— Nada, sou pequena.
Ela foi à lenha e arrancou alguns toros. — A lenha está para acabar, marido. Vou no mato
levar mais.
— Vai mulher. Eu vou ficar a covar seu cemitério.
Ela já se afastava quando um gesto a prendeu à
capulana e, assim como estava, de costas para ele,
disse:
— Olha, velho. Estou pedir uma coisa...
— Queres o quê?
— Cova pouco fundo. Quero ficar em cima, perto do
chão, tocar a vida quase um bocadinho.
— Está certo. Não lhe vou pisar com muita terra.
Durante duas semanas o velho dedicou‑se ao
buraco. Quanto mais perto do fim mais se demorava. Foi de repente, vieram as chuvas. A campa ficou
cheia de água, parecia um charco sem respeito. O
velho amaldiçoou as nuvens e os céus que as trouxeram.
— Não fala asneiras, vai ser dado o castigo — aconselhou ela. Choveram mais dias e as paredes da cova
ruíram. O velho atravessou o seu chão e olhou o estrago. Ali mesmo decidiu continuar. Molhado, sob o rio
da chuva, o velho descia e subia, levantando cada vez
mais gemidos e menos terra.
— Sai da chuva, marido. Você não aguenta, assim.
— Não barulha, mulher — ordenou o velho.
De
quando em quando parava para olhar o cinzento do
céu. Queria saber quem teria mais serviço, se ele se
a chuva.
No dia seguinte o velho foi acordado pelos seus
ossos que o puxavam para dentro do corpo dorido.
— Estou a doer‑me, mulher. Já não aguento levantar.
A mulher virou‑se para ele e limpou‑lhe o suor
do rosto. — Você está cheio com a febre. Foi a chuva que apanhaste.
— Não é, mulher. Foi que dormi perto da fogueira.
— Qual fogueira?
Ele respondeu um gemido. A velha assustou‑se: - qual o fogo que o homem vira? Se nenhum não
haviam acendido?
Levantou‑se para lhe chegar a tigela com a papa
de milho. Quando se virou já ele estava de pé, procurando a pá. Pegou nela e arrastou‑se para fora de
casa. De dois em dois passos parava para se apoiar.
— Marido, não vai assim. Come primeiro.
Ele acenou um gesto bêbado. A velha insistiu:
— Você está esquerdear, direitar. Descansa lá um
bocado.
Ele estava já dentro do buraco e preparava‑se
para retomar a obra. A febre lhe castigava a teimosia, as tonturas dançando com os lados do mundo.
De repente, gritou‑se num desespero:
— Mulher, ajuda‑me.
Caiu como um ramo cortado, uma nuvem rasgada. A velha acorreu para o socorrer.
— Estás muito doente.
Puxando‑o pelos braços ela trouxe‑o para a esteira.
Ele ficou deitado a respirar. A vida dele estava toda
ali, repartida nas costelas que subiam e desciam.
Neste
deserto solitário, a morte é um simples deslizar, um
recolher de asas. Não é um rasgão violento como nos
lugares onde a vida brilha.
— Mulher — disse ele com voz desaparecida. —
Não lhe posso deixar assim.
— Estás a pensar o quê?
— Não posso deixar aquela campa sem proveito.
Tenho que matar‑te. — É verdade, marido. Você teve tanto trabalho
para fazer aquele buraco. É uma pena ficar assim.
— Sim, hei de matar você; hoje não, falta‑me o
corpo.
Ela ajudou‑o a erguer‑se e serviu‑lhe uma chávena de chá.
— Bebe, homem. Bebe para ficar bom, amanhã precisas da força.
O velho adormeceu, a mulher sentou‑se à porta.
Na sombra do seu descanso viu o sol vazar, lento rei
das luzes. Pensou no dia e riu‑se dos contrários: ela,
cujo nascimento faltara nas datas, tinha já o seu fim
marcado. Quando a lua começou a acender as árvores
do mato ela inclinou‑se e adormeceu. Sonhou dali
para muito longe: vieram os filhos, os mortos e os
vivos, a machamba encheu‑se de produtos, os olhos
a escorregarem no verde. O velho estava no centro, engravatado, contando as histórias, mentira quase todas.
Estavam ali os todos, os filhos e os netos. Estava ali
a vida a continuar‑se, grávida de promessas.
Naquela
roda feliz, todos acreditavam na verdade dos velhos,
todos tinham sempre razão, nenhuma mãe abria a
sua carne para a morte.
Os ruídos da manhã foram‑na chamando para fora de si, ela negando abandonar
aquele sonho, pediu com tanta devoção como pedira
à vida que não lhe roubasse os filhos.
Procurou na penumbra o braço do marido para
acrescentar força naquela tremura que sentia. Quando a sua mão encontrou o corpo do companheiro viu
que estava frio, tão frio que parecia que, desta vez,
ele adormecera longe dessa fogueira que ninguém
nunca acendera.
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Médico na Escola
Dr José Carlos Machado
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