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quarta-feira, 28 de agosto de 2024

LIMITES





LIMITES (comentário)
José Carlos Machado



Tem dias que eu fico pensando na vida
E sinceramente não vejo saída
Como é por exemplo que dá pra entender
A gente mal nasce e começa a morrer
Depois da chegada vem sempre a partida
Porque não há nada sem separação
Sei lá, sei lá
A vida é uma grande ilusão
Sei lá, sei lá
Só sei que ela está com a razão
Sei lá, sei lá
A vida é uma grande ilusão
Sei lá, sei lá
Só sei que ela está com a razão
Ninguém nunca sabe que males se apronta
Fazendo de conta, fingindo esquecer
Que nada renasce antes que se acabe
E o Sol que desponta tem que anoitecer
De nada adianta ficar-se de fora
A hora do sim é o descuido do não
Sei lá, sei lá
Eu só sei que é preciso paixão
Sei lá, sei lá
A vida tem sempre razão*

A vida tem sempre razão como já dizia o poeta Vinícius de Moraes e como a própria letra adverte "de nada adianta ficar-se de fora, a hora do sim é o descuido do não", então quando pensamos em limites é preciso avaliar até que ponto essas negativas descuidadas não irão permitir alguns consentimentos equivocados e prejudiciais. Pois é, realmente "ninguém nunca sabe que males se apronta, fazendo de conta, fingindo esquecer", não dá para ficar indiferente diante de muitas coisas desejadas concedidas sem julgamento, sem discussão.
Estabelecer limites é definir regras, ou seja, demarcar terreno. Se no campo físico isso às vezes é complicado, subjetivamente a tarefa adquire outros tantos desafios. Afinal por que se torna tão importante que saibamos colocar limites em nossas ações e no aspecto pedagógico chega a ser primordial essa tarefa? Simplesmente porque a configuração desse contorno proporciona que o sujeito perceba que o mundo não foi feito para satisfazê-lo e, justamente em razão disso, que aprender que nem tudo é possível de se conseguir na hora que se quer, auxilia e estrutura psiquicamente a criança. Forma caráter. Frustrações acontecem, até mais do que gostaríamos e, de fato, o meu limite termina onde começa o limite do outro, mas para tanto é necessário que o indivíduo tenha essa experiência, ou seja, muitas vezes não vai dar e as coisas continuarão a existir à despeito de nosso desprazer. Aqueles que pouco experenciam isso correm o risco de acreditar que a culpa é sempre do outro e projetam para fora de si suas contrariedades, o destino passa a ser cruel. A vida estabelece essas regras, não se pode ter tudo, aprendemos muito mais com a ausência e com a falta do que com a facilidade e permissão desregrada. Sei lá, só sei que ela está com razão.
Pensando na criança, como estabelecer limites e fazê-la entender? Como traçar essa conformação para que perceba que nem tudo ela pode fazer? Então nos reportamos ao desenvolvimento infantil e na própria fisiologia humana, onde acontecem situações que surgem e que depois terminam e também quando podemos constatar que aquelas onde esse adiamento é postergado, retardado ou adiado apresentarão invariavelmente, problemas. Por exemplo, o parto, que tem uma evolução sem grandes inconvenientes quando se processa a termo (em torno de 36 semanas), não é o mesmo se acontecer antes (prematuramente) ou depois (póstermo). O surgimento dos dentes, configura uma nova fase de vida com a possibilidade de que o corpo já poderá receber alimentos sólidos, sugerindo que a manutenção dos alimentos líquidos (leite) já pode ser modificada com a introdução gradativa de sólidos. Mais tarde a criança já conquista também a regulação dos esfíncteres e se pode se ver livre das fraldas. São fases que tem o seu começo, o seu término e que devem durar apenas o necessário, fisiologicamente o corpo apresenta mudanças que requerem transformações. Geralmente a manutenção ou a aceleração dessas etapas ocasiona muitos distúrbios.
Sob o ponto de vista comportamental,  sinalizar até onde a criança pode ir é da maior importância e significado, porque registra e deixa claro que limites existem e precisam ser respeitados e que atitudes geram consequências. Enfatizando que crianças pequenas necessitam de atitudes firmes, revestidas de autoridade amorosa onde o processo é modelar, sem necessidades de explicações e verborragia. Nesse ponto a observação que muitos profissionais que lidam diretamente com crianças comentam que cada vez mais fica confuso para elas entenderem o que os adultos pensam ou o que querem. Crianças precisam de orientação, não tem ainda tempo de vida, nem condições de escolherem aquilo que realmente seja adequado para elas. Isso não significa que não desejem e queiram coisas, mas essas escolhas seriam as mais adequadas para elas? Teriam realmente capacidade de saber o que é bom para elas? Muitos pais acreditam que sim e se submetem à vontade e desejo de seus filhos, incondicionalmente. Invertem a hierarquia onde seriam os pais aqueles que conduzem as crianças e passam a ser conduzidos por elas. Essa é uma questão que incomoda professores, médicos e terapeutas que questionam justamente o fato de que os pais, diante das escolhas de seus filhos, se tornarem reféns de seus caprichos e desejos, mesmo tendo consciência que isso não foi a melhor conduta, continuam se submetendo a esses devaneios. E por que isso acontece? Talvez por receio de perder o amor de seus filhos diante de uma resposta negativa, talvez pela própria inexperiência em como agir, por terem sido muito castrados quando crianças e agora querem agir justamente ao contrário daquilo que experimentaram, pelo despreparo em lidar com conflitos, pois muitos pais adiam situações semelhantes em suas próprias vidas abafando qualquer tentativa de confronto e outras tantas razões que oferecem como resultado comum o empoderamento desmedido de crianças que enfrentam seus pais e se tornam pessoas com um limiar muito baixo de frustração, acreditando que o mundo foi feito para satisfazê-las. Os pais se transformam em seus reféns.
Rudolf Steiner (1861 - 1925) filósofo, educador e criador da Antroposofia considera que a criança de primeiro setênio (0 - 07 anos) apresenta uma observação de mundo que ele define como "o mundo é BOM", depois disso, a partir do segundo setênio de vida (7 - 14 anos), sua observação é de que "o mundo é BELO" e mais tarde, em seu terceiro setênio de vida (14 - 21 anos) de que "o mundo é VERDADEIRO". Levando em conta o que foi exposto acima, os limites também ficam submetidos àquilo que a criança observa à sua volta. Portanto, uma criança pequena que considera que existe essa bondade no mundo que a cerca, deveria necessariamente experimentar esse sentimento e para isso o seu condutor, aquele adulto que cuida e a protege deveria se comprometer com essa expectativa infantil. E como promover essa bondade? Simplesmente trazendo a ideia de que esse adulto deveria saber o que é BOM e nesse mundo então protegido e confiável terá um lugar para ela. Um grande equívoco que muitos pais cometem nessa fase de vida é acreditar que um mundo BOM é aquele em que as crianças não experimentem frustrações e que tudo lhes seja proporcionado sem senões ou negativas, reduzindo e transformando bondade por obtenção de desejos sem restrições, criando na verdade um mundo alienante e irreal, que talvez realmente exista dentro de sua casa, mas que se apresenta completamente diferente fora dali, da proteção psicótica daqueles que não estabelecem regras e ensinam à criança que nem tudo pode ser obtido e que sim, não conseguimos imediatamente tudo aquilo que desejamos. Uma tarefa cada vez mais difícil, porém absolutamente necessária para conduzir com segurança crianças menos inseguras e mais preparadas para viver no mundo real.  
Falar sobre limites é também refletir sobre a dificuldade que todos nós temos de lidar com nossas frustrações, com nossas perdas. Somos seres da incompletude, não nascemos prontos, ao contrário, vamos nos completando com nossos acertos, mas também com nossos fracassos, aprendendo a sobreviver psiquicamente com nossas perdas e desilusões. Quando tentamos trazer essas questões para o âmbito infantil é fundamental que seja observado uma prerrogativa inicial: - Sabemos realmente lidar com nossas frustrações? Nossos limites se encontram intransponíveis ou conseguimos transitar razoavelmente sobre a possibilidade de nem sempre estarmos certos. Essa subjetividade deve ser observada e trabalhada. Essas tarefas trazem como consequência não somente o desenvolvimento pessoal, mas pedagogicamente essas transformações afetam diretamente as crianças que estão sendo conduzidas por esse adulto que se questiona e tenta se modificar.
Estudos comportamentais observaram que pais permissivos geram atitudes com pouca ou quase nenhuma consequência e imprime nas crianças que, de fato, o mundo é um paraíso, onde tudo pode ser realizado sem impedimentos. O discurso de que as crianças precisam experimentar fazer aquilo que desejam, cai por terra quando esses experimentos prescindem da autoridade dos pais, que se mostram fragilizados diante desse empoderamento desproporcional. Importante observar que a indicação do que deve ou deve ser feito pela criança, restringindo algumas atitudes e incentivando outras é a tarefa intransferível dos pais. Não deveria ser encarada como uma castração ou um impedimento de sua liberdade como querem alguns, mas um cuidado que demonstra que os pais sabem aquilo que é adequado ou não para seu filho. Essa é uma tarefa absolutamente individual e solitária, sem ressalvas ou desculpas e completamente sem garantias, talvez isso seja assustador para muitos pais que temem perder o amor de seus filhos a partir do momento que atitudes mais firmes (não necessariamente autoritárias) entrem em confronto com aquilo que seus filhos gostariam de ter e, justamente nesse ajuste entre o limite da autoridade parental exercida com amorosidade, mas de maneira firme é que se estabelece o maior ensinamento para a criança porque constata na atitude segura de seus pais pessoas em quem ela pode contar. 


* SEI LÁ (A vida tem sempre razão) - Vinicius de Morais/Toquinho 









Médico Escolar - Dr. José Carlos Machado www.mediconaescola.com Acompanhe também nosso canal no YouTube - https://www.youtube.com/user/medicinaescolar. @antroposofiaemdia.

quinta-feira, 13 de junho de 2024

O PRESENTE VALIOSO - conto











O PRESENTE VALIOSO (conto)
Dois jovens sobreviventes viviam juntos e tentavam ser felizes. Acreditavam que
 o futuro seria melhor. Quando um esmorecia o outro animava e quando 
constatavam  a dificuldade daquela vida árdua lembravam que tinham um 
ao outro e esse alento garantia a esperança que dias melhores haveriam de surgir.
Como dispunham de poucos objetos de valor e viviam com muita pobreza, nem
 sonhavam com presentes, mas ambos acalentavam em segredo o desejo de
 oferecer ao parceiro alguma coisa que demonstrasse um pouco da ternura e
 amor que sentiam.
A moça tinha um cabelo lindo que valorizava o seu rosto delicado e abrandava um
 pouco as feições de sofrimento da labuta diária, aquele era o seu maior tesouro, 
que penteava com suas próprias mãos, pois nem pente ela dispunha, tal a miséria 
que viviam.
O rapaz igualmente nada tinha de valor, exceto um velho relógio, herança de seu
 pai, que guardava com zelo dentro do seu bolso, que nem mais funcionava, 
mas era o seu objeto mais precioso, o único que dispunha.
Um dia tiveram a ideia de presentearem um ao outro com alguma coisa que 
pudesse demonstrar o grande carinho que sentiam. Coincidentemente, mas
 em segredo pensaram em como realizar esse desejo.
A moça lembrou que na cidade havia uma mulher que talvez se interessasse
 pelos seus cabelos e foi ao encontro dela, imaginando que pudesse receber
 em troca alguma mercadoria para oferecer a seu amado e como todos eram
 muito pobres a única coisa que mulher tinha para oferecer em troca dos cabelos
 da jovem era uma velha corrente de ouro. A moça ficou feliz com aquela
 oferta, pois lembrou-se do relógio do marido e que complementaria
 perfeitamente.  Sem a menor dúvida, imediatamente aceitou a troca, deixou 
que seus cabelos fossem cortados, colocando um véu na cabeça voltou para
 casa ansiosa para encontrar seu amor e entregar a surpresa.
Por sua vez o rapaz também procurava algo que pudesse agradar sua esposa
 adorada e não pensou duas vezes em se desfazer de seu único bem em troca de
 algo especial. Encontrou um comerciante que fazia trocas em sua loja e no
 meio de tantas quinquilharias encontrou uma escova com cabo de madrepérola,
desgastada pelo tempo, mas que seria valiosa para sua amada pentear seus lindos
 cabelos e sem pestanejar trocou o relógio do seu pai pela escova.
Ambos estavam felizes com suas escolhas e não viam a hora de oferecer a surpresa
 para seu amor.
Naquela noite quando se encontraram após o trabalho, ansiosos de como seria 
a admiração do companheiro ao receber o presente. A moça não se conteve e 
assim que o rapaz entrou em casa entregou-lhe a corrente de ouro e ele,
comovido, ofertou-lhe a escova. Ela deixou cair o véu e o rapaz mostrou
 o bolso vazio. Sorriram  e entenderam perfeitamente aquele gesto de amor 
que fizeram um ao outro, então se abraçaram e comemoraram a alegria
 de estarem juntos.
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