NARRAÇÃO DE CONTO INFANTIL COMO ABORDAGEM TERAPÊUTICA EM COMUNIDADE RIBEIRINHA DA AMAZÔNIA
Diante da tecnologia contemporânea, informatizada e globalizada, anseia-se por uma outra forma de expressão. Busca-se uma “linguagem” que alimente, que fortaleça as próprias imagens do ser humano e que o leve aonde ele quer chegar. Os contos de fadas remetem a uma história de transformações quando são acolhidos pela compreensão do ser humano integral. As histórias carreiam um conhecimento sedimentado e acumulado por toda a humanidade 1, 2. Segundo Steiner os contos de fadas são um tesouro espiritual da humanidade fruto de vivências primordiais da existência humana em que sua atuação tem um efeito inconsciente na alma, alimentando-a.
Numa reflexão sobre a atuação dos contos, Steiner mencionou a relação dos contos com o inconsciente e ressaltou seu envolvimento nas profundezas da alma humana. Ao entrar em contato com a poesia e com a atmosfera dos contos, tem-se um sentimento primordial e elementar pertencendo aos efeitos inconscientes. Sentimento semelhante ocorre quando se depara com as comoventes tragédias das obras de arte 1, 3.
Os abalos das tragédias resultam do destino e de sua
discrição, havendo uma proporção entre o enredo, o fio que deve ser fiado e
desfeito pela tragédia e certas vivências individuais da alma humana no mundo
exterior 1. Tem-se um sentimento de que, de um modo ou de outro, a alma fica
envolvida neste ou naquele destino de vida ao vivenciar o trágico, tal como, foi
apresentado.
Goethe tentou penetrar profundamente nas fontes e nos
motivos da existência, quando quis transmitir uma vivência mais profunda da
alma humana ele recorreu aos contos, falando das exigências mais elevadas da
vida da alma. Assim o fez quando escreveu Serpente Verde da Bela Líria 1.
A magia da narrativa atua como alimento anímico, pois a alma
humana tem uma necessidade inextinguível de deixar correr por suas veias
espirituais o conteúdo dos contos de fadas, do mesmo modo que o organismo tem a
necessidade de fazer circular em si mesmo uma substância nutritiva 1. Existe na
alma humana algo idêntico a fome do organismo. Da mesma forma que se precisa de
algo para eliminar a fome orgânica, é necessário saciar a fome anímica. Assim,
surge o impulso de buscar num conto de fadas, num mito, ou nas artes um
preenchimento consciente para a alma 3. O que se expressa não é aquilo que pode
atingir o homem numa situação específica da vida, não é um círculo limitado da
vivência humana, e sim algo tão profundo, que passa a ser comum a toda
humanidade.
Uma das grandes contribuições para a Medicina e a Psicologia
antroposófica foi o aprofundamento do estudo das leis biográficas. Segundo a
qual o desenvolvimento humano se dá em ciclos de sete anos, denominados setênios.
Os setênios são marcados por acontecimentos significativos no campo biológico e
psicológico. Cada setênio apresenta características marcantes, as quais
obviamente não se passam da mesma forma durante a fase toda, havendo aspectos
de um período anterior que ainda se manifestam num posterior, bem como
antecipações de características futuras 4.
Do nascimento aos sete anos são vistas profundas
transformações relacionadas ao crescimento e desenvolvimento neuropsicomotor 5.
O bebê se transforma numa criança com pensar lógico, com sentimentos, vontade
própria e muita agilidade. A troca dos dentes e o início da alfabetização, em
torno dos sete anos, marcam essa mudança de ciclo. Aos quatorze anos, a maioria
dos jovens atingiu a puberdade, marcando um amadurecimento biológico com a
maturidade sexual e aos 21 anos geralmente buscam a sua independência da
família, já tendo alcançado a maioridade jurídica. Assim, a alma humana vai se
transformando junto com o seu corpo físico-biológico 2, 3, 6.
Setzer 4 considera que a educação é melhor recebida pelos
jovens e crianças no decorrer dos três
primeiros setênios. Já o adulto, pode armazenar informações, como é feito nas
universidades, porém não pode mais ser educado. As falhas e omissões
educacionais ocorridas na infância e adolescência podem ser compensadas,
corrigidas, mas requerem um esforço da própria pessoa 2.
Ao completar 21 anos
de idade, mudanças e evoluções são possíveis apenas por meio da auto-educação,
um processo trabalhoso, e que dura à vida toda. Encontra-se assim a importância
da educação nos primeiros setênios da biografia humana 3.
Num aprofundamento sobre o primeiro setênio, onde a educação
se consagra, os órgãos de percepção sensória da criança estão amplamente
abertos e, a partir de uma intensa atividade em seu interior, ela responde com
a repetição dos estímulos vindos do ambiente exterior, a imitação 6. Essa
imitação é a grande força que a criança de primeiro setênio tem disponível para a aprendizagem,
inclusive a do falar, do fazer, do adequado ou impróprio no comportamento
humano. E é por uma imitação mais sutil que ela cria, ainda sem consciência, o
fundamento para a sua moralidade futura 5.
Nesse período do desenvolvimento o contato com os outros
está favorecido, a criança esta rodeada de amigos. Encontra-se aberta a
contatos, porém as amizades ainda são bastante superficiais, não atingindo
efetivamente o outro; são muito mais destinadas a trazer o outro para o seu
próprio mundo e brincar 6. Durante o primeiro setênio, a relação mais importante
com o mundo exterior transcorre de fora para dentro. Todavia, as experiências
adquiridas ainda não são centralizadas no eu, ou seja, no centro de sua
consciência 6.
O ciclo de vida humana, para Steiner, tem início de vida com
muita vitalidade física e pouca consciência. Em seguida há um período com maior
maturação emocional e apropriação do mundo, seguido geralmente por uma fase de
maturidade, sabedoria e desenvolvimento de consciência social, mas com baixa
vitalidade. No fim da vida há um "desprender-se do mundo" 7 .
A Pedagogia Waldorf criada por Rudolf Steiner foi utilizada
a princípio, no ano de 1919 em Stuttgart, na Alemanha, e preocupava-se com o
desenvolvimento global dos alunos. A ênfase era dada às diferenças individuais
e em como ajudar os alunos a descobrir em suas capacidades e realizarem seu
potencial. Assim, o currículo escolar desenvolve-se em bases
antropológico-antroposóficas, tendo em vista a evolução física, emocional e
espiritual do ser humano 5, 8.
A proposta pedagógica para o primeiro setênio, considera que
para o desenvolvimento da criança é preciso criar um ambiente propício à
formação e não uma pré-escola com informações ou ensino formal. Na idade
pré-escolar, a atuação da criança desenvolve-se em grande parte sob a simples
forma do brincar. Brincando, a criança tem a oportunidade de satisfazer sua
curiosidade, experimentando e descobrindo múltiplos materiais. O modo de
brincar da criança é influenciado pela imitação e pela fantasia 6. Por isso, é
dada muita importância aos contos de fadas e a outros recursos que estimulem
sua fantasia 8.
A fantasia seria o correlato, no mundo físico, da
clarividência espiritual. Daí a importância colocada no respeito à fantasia da
criança, e do resgate dela no adulto intelectualizado. Segundo Steiner, a
clarividência existia nos períodos antigos, e ela seria a faculdade responsável
pela revelação do que existe de espiritual em cada criatura e cada processo da
natureza. Era essa vivência que possibilitava a rendição e a devoção desse
homem aos seres e processos da natureza, fazendo com que as leis do Cosmo
fossem incorporadas ao ritual e ao culto 1, 2.
A visão antroposófica acredita que a arte é o caminho e a
expressão do homem pelo Cosmo e no Cosmo. A pedagogia Waldorf foi
metodologicamente apoiada na atuação artística do professor e de seus alunos. A
intenção de Steiner foi de criar uma instituição educacional dirigida em bases
sociais, buscando encontrar o espírito integral e o método de sua atuação
docente na Antroposofia. Ele acreditava que isso seria possível pelo caráter
humano e universal que residia nos princípios antroposóficos. Para ele, havia a
necessidade de impulsos morais e espirituais nos métodos educacionais, que
trabalhassem o interior das almas dos docentes, conduzindo-os aos problemas
fundamentais da vida espiritual moderna que estariam conectados com a forma
assumida pela cultura e pela civilização em curso na história humana 9.
A Pedagogia Waldorf, com seu enfoque artístico surgiu como
uma possibilidade de desenvolvimento dessas faculdades. Por meio do uso da
imaginação e da fantasia, a criança desenvolveria seu potencial criativo e as
faculdades anímicas que lhe possibilitariam enxergar o mundo de forma
artística. Na prática, ao ouvir um conto de fadas, por exemplo, a criança criaria
imagens em sua alma. Essas imagens surgiriam no momento em que ela fosse
solicitada a desenhar aquilo que lhe foi transmitido por intermédio das
palavras. O exercício constante dessas atividades fortaleceria suas
potencialidades de criação e estabeleceria sua maneira diferenciada de enxergar
o mundo. Antes de trabalhar o intelecto, o professor atuaria nas forças da
fantasia e da imaginação. Quando este intelecto fosse solicitado,
posteriormente, poderia atuar ao unir conhecimento e arte 10.
Dessa forma, os conto de fadas pertencem aos efeitos
inconscientes e brotam de modo espontâneo. Na criança, a essência humana ainda
está ligada primordialmente à existência integral, ao todo da vida, ela
necessita do conto de fadas como alimento de sua alma. Nessa abordagem, a
criança ainda precisa estar criadoramente ativa, necessita gerar as próprias
forças formadoras para seu crescimento e o desenvolvimento de todas as suas
aptidões. Por isso a criança sente as imagens dos contos de fadas como
maravilhoso alimento para sua alma, imagens em que ela se liga radicalmente à
existência 1, 3, 5, 6.
De acordo com a Salutogênese (gênese da saúde, em
contraposição a patogênese, gênese da doença 7 ), o indivíduo sadio é aquele
que conseguiu formar, durante sua vida, um forte senso de coerência e este não
depende apenas da cognição, da razão intelectual. Carece, também, de
aprendizado e harmonia nos âmbitos emocional e volitivo, passíveis de trabalho
institucional, por uma pedagogia que se interesse de maneira equalitária por todos
esses níveis. Para se alcançar o bem-estar, a saúde em todos os seus âmbitos,
propõe-se um caminho pedagógico que se ocupa, concretamente, da formação
integral do ser humano, assim, vemos essa premissa inteiramente contemplada na
pedagogia Waldorf e em outros estudiosos da Alemanha e da Suíça 11, 12.
Costa 11 analisa esse
novo paradigma relativo à saúde, a salutogênese, inaugurado por Aaron
Antonovsky, em 1987, e o relaciona com a pedagogia Waldorf. Propôs uma
complementaridade entre ambos, em que um pode, potencialmente, ser o
sustentáculo e impulsionador do outro 11.
Lindström 12
questiona o fato dos profissionais da saúde acreditarem que cabe a eles guiar
os jovens nas intercorrências da vida para que enfim tornem-se adultos
bem-sucedidos. Conforme o Chatter de Ottowa, em 1986, foram estabelecidos os
princípios para o processo de promoção da saúde, em que capacitam as pessoas a
terem controle sobre os fatores determinantes da saúde a fim poderem gozar de
uma boa qualidade de vida 13.
Por mais de 50 anos a definição de saúde da OMS dizia a
"saúde é não só a ausência de doença, mas um estado de completo bem-estar
físico, mental e social" 14. Entretanto, as atuais ciências da saúde
também modificaram sua estrutura e raciocínio, com o acréscimo, em 1987 por
Mahler 15, de uma quarta dimensão, o bem-estar espiritual 12.
A Salutogênese sugere que, através do aprendizado das
experiências de vida, pavimenta-se o desenvolvimento do senso de coerência 16,
principal orientador e guia anti-stress da vida moderna contemporânea. Propõe
que a promoção e manutenção da saúde de maneira abrangente dependem de como foi
formada a visão de mundo, do sentido que tem a vida e do engajamento e
envolvimento que se fez com esta 12.
Aprofundando os trabalhos de Dahlin et al 17, Lindström 12
ressalta que as pessoas têm à sua disposição recursos de caráter interno e
externo, o que lhes facilita administrar a vida. Explicou que o senso de
coerência manifesta-se com um sentimento global, abrangente, de que, o que quer
que aconteça na vida, será algo que se pode entender, será algo que se pode
administrar e será algo que, como tudo o mais, tem um sentido e um significado
17 dos indivíduos desenvolve-se ao longo de toda a infância e está
razoavelmente estável após os 30 anos, quando então somente grandes eventos da
vida podem perturbá-lo ou modificá-lo. A percepção que se tem de coerência
baseia-se em fatores cognitivos, comportamentais e motivacionais. Os poucos
estudos sobre senso de coerência que investigaram a adolescência, entre 13 e 15
anos, mostram que as meninas, por algum tempo, têm um senso de coerência
bastante inferior ao dos meninos de mesma idade. Isso ocorre na mesma idade em
que as meninas têm uma auto-estima bastante inferior à dos meninos, mais uma
vez indicação do quanto o senso de coerência está relacionado ao bem estar
mental 12, 16, 17.
A privação dos contos para crianças é como extinguir o
melhor alimento para alma. Muitos pais se perguntam se deve ou não contar
contos de fadas para a criança. Os preocupa se lhe fará mal tal ou qual
passagem horrenda, pois no conto se relatam acontecimentos cruéis que poderiam
perturbar a inocência da criança 3. Muitas vezes, pensando assim, se decide
eliminar tais contos. Em conseqüência, se priva a criança do melhor alimento
para a alma, porque nos verdadeiros contos de antigamente estão contidos
acontecimentos da alma, que têm suas raízes nas forças construtivas da
humanidade 1, 3.
Sabe-se que na bacia do Amazonas há comunidades que vivem
isoladas e dependem do rio para sobrevivência e transporte, são chamados de
ribeirinhos. Essa população é desprovida de diversos recursos básicos como
saúde, educação e saneamento.
Rondônia tem 1,31 milhões de habitantes e cerca de um quarto
mora na capital. Entre a década de 60 e 80 a população do estado cresceu nove
vezes. O estado conta com 22.433 km de rodovias, sendo apenas 6,32%
pavimentadas. O saneamento básico também é bastante precário. Segundo o IBGE –
censo de 1998, a rede de esgoto alcançava apenas 3,5% dos domicílios do estado
18.
Os reflexos dessas condições insalubres aparecem na saúde da
população: o estado é considerado pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) uma
região endêmica de malária, leishmaniose e febre amarela. De acordo com dados
do Conselho Federal de Medicina, conta com 4,59 médicos para cada grupo de 10
mil habitantes, menos da metade do que é considerado aceitável pela Organização
Mundial de Saúde (OMS) 18.
As comunidades nas quais o trabalho foi realizado
localizam-se no Estado de Rondônia, às margens do rio Madeira e nos seus
afluentes, rio Preto e rio Machado, fazendo parte da bacia hidrográfica do
Amazonas e, administrativamente ligadas ao município de Porto Velho 19.
A escassez de recursos mobilizou universitários que se
organizam num Núcleo de Apoio a População Ribeirinha da Amazônia 20. Uma
Organização não governamental (ONG) sem fins lucrativos que foi constituída com
a finalidade de apoiar o desenvolvimento de populações ribeirinhas residentes
em um trecho do Rio Madeira em Rondônia. Algumas das comunidades atendidas são
Curicacas, Itacoã, Nazaré, Papagaios, Reserva extrativista do Lago Cuniã, Santa
Catarina, São Carlos, Terra Caída e comunidades do rio Preto, Machado e Jamari.
O projeto é estruturado para atuar nas áreas da Saúde,
Educação e Produção. No ano de 2005 a equipe foi composta de profissionais e
alunos de diferentes cursos, a saber, Odontologia, Medicina, Engenharia de
Produção, Farmácia, Fisioterapia, Enfermagem, Terapia Ocupacional, Psicologia,
Biologia, Direito, Nutrição, Imagem e Som, Ciências Sociais, Física e
Veterinária provenientes de mais de 10 universidades, públicas e privadas, do
Estado de São Paulo 20.
Os acadêmicos são orientados por profissionais do NAPRA e
colaboradores durante o ano, inclusive nas interações em Rondônia no mês de
julho. Para preparação da equipe são realizadas reuniões mensais de
desenvolvimento, que viabilizam discussão de projetos, interações dos
participantes e planejamento de captação de recursos 19, 20.
As equipes multiprofissionais realizam atendimento médico e
odontológico, análises clínicas e laboratoriais, prevenção em saúde, educação
ambiental e reciclagem de lixo, apoio à formação de professores, formação de
multiplicadores locais, desenvolvimento cultural e desenvolvimento de produção
e comercialização.
Esperou-se neste trabalho traçar um caminho
pedagógico-terapêutico, utilizando-se dos contos de fadas, fortalecendo o
binômio saúde e educação, enfocando a formação de seres humanos livres e
salubres, conforme o proposto pelos princípios da salutogênese 1, 11, 12.
O conto abordado foi “Alva Neve e Rosa Rubra” dos irmãos
Grimm. A escolha do conto se deu pela aproximação da narrativa de Alva Neve e
Rosa Rubra, com a realidade dos ribeirinhos, o público alvo. Estava presente
uma relação harmônica entre as personagens e o ambiente, aproximando-se dos
objetivos da ONG que procuram um melhor relacionamento da comunidade com o
ambiente em que vivem.
A narrativa do conto descreve uma floresta e uma cabana onde
moram duas meninas com a mãe. Em frente da cabana havia um jardim de flores
brancas e vermelhas, as meninas se pareciam com as flores e se chamavam Alva
Neve e Rosa Rubra. A relação domiciliar era harmônica, bem como, com a natureza.
Enquanto Rosa Rubra se dedicava mais aos cuidados da casa, Alva Neve cuidava de
sua mãe. A relação das meninas com a natureza era tamanha que elas passavam
horas passeando pela floresta. Às vezes quando caia a noite e elas não haviam
voltado pra casa, a mãe não se preocupava porque sabia que elas estariam bem
dormindo na floresta.
Certo dia de inverno, um grande urso bate na porta da
cabana. Num primeiro instante as meninas se assustaram. Chegaram, até mesmo, a
se esconderem atrás da cama. A mãe as explicou que o urso não iria fazer mal a
ninguém e que, provavelmente ele estaria com frio e procurava por um abrigo. A
mãe permitiu que ele ficasse perto da lareira. Em poucos minutos as meninas já
tinham perdido o medo e começaram a brincar com o urso. Essa cena ocorria
diariamente, todas as noites tinha-se a espera por ele.
Quando a primavera iniciava-se, o urso se despediu de todos
e disse que tinha que voltar pra floresta para impedir que a destruíssem em
busca de ouro. As meninas mesmo tristonhas aceitaram a decisão do urso.
Em uma das andanças pela floresta, as garotas ouviram certo
resmungo. Foram ver o que acontecia e se depararam com um anão escarlate com a
barba enroscada em um tronco de madeira. Ele tinha um grande saco e não deixava
ninguém ver o que tinha nele. Como eram boas meninas elas tentaram,
incessantemente, libertar o anão; por fim, precisaram cortar a barba para poder
soltá-lo. O anão mal agradecido, desde o começo, só gritou e repudiou as duas
meninas. “Meninas burras, como sois estúpidas”. Cena semelhante se repetiu, ora
enroscando a barba no anzol ora em uma pedra.
Num outro dia de passeio, das meninas se depararam com o
anão enroscado com sua barba na pedra, quando apareceu um urso furioso. O anão
com muito medo do urso disse pra ele comer as meninas porque elas eram maiores
e mais suculentas. Todavia, o urso deu uma forte patada no anão que acabou
matando a pequena criatura. As garotas estavam com muito medo do urso até que
reconheceram que o urso que ali estava era o grande amigo de inverno.
Com a morte do anão, como num passe de mágica o urso se
transformou num belo príncipe. Contou para Alva Neve e Rosa Rubra que ele tinha
sido enfeitiçado pelo anão e por fim, acabou casando-se com Alva Neve e seu
irmão com Rosa Rubra. A mãe continuou a morar na antiga cabana recebendo sempre
visitas de suas filhas 22, 23.
Objetivo
Oferecer às crianças as imagens dos contos de fadas e deixar
aflorar sua narrativa no imaginário infantil local. Visando o despertar, por
meio dos contos de fadas, impulsos anímicos que ecoem na formação de seres
humanos solidários, engajados, criativos, coerentes e saudáveis, com autonomia
para gerenciar, em liberdade, suas vidas e suas comunidades.
Métodos
Método
Participantes: aproximadamente 100 crianças, com faixa etária
entre 05 e 12 anos (primeiro e segundo setênios 4 ). As comunidades
contempladas foram a de São Carlos do Jamari e de Nazaré, ambas distrito da
capital Porto Velho- RO.
Materiais: bonecos de lã, cenário desenhados em pano,
instrumentos musicais e materiais naturais como galhos grossos de várias formas
e tamanhos, cobertos com panos e papéis coloridos, assim como cascas de
árvores, folhas, pedras que somavam o desenho do cenário. A “paisagem”
construída buscava a aproximação da narrativa com a floresta amazônica.
Procedimentos: primeiramente buscou-se um conto que se
aproximasse das condições dos ribeirinhos, visando facilitar a identificação
das crianças. Após a escolha construí-se um cenário e os personagens da
história.
Aos chegar nas comunidades alvo foi conversado com as
diretoras de duas escolas rurais, em comunidades ribeirinhas diferentes. A
apresentação foi teatral e adaptada, após a apresentação foram feitas
brincadeiras de roda e cantorias com as crianças.
Adaptação do Conto
A história original passou por algumas adaptações, embora
que controversas pela literatura 1, 3, para melhor compreensão por parte do
público. Houve modificações verbais e nas personagens. Dessa forma, optou-se
por alterar os nomes originais de “Alva Neve”, “Rosa Rubra”, e “Urso” para
“Branca Nuvem”, “Rosa Flor” e “Onça Negra”, respectivamente.
A floresta foi transmitida pelo cenário (desenho) com
características tropicais, como araras, bromélias, árvores típicas às margens
de um grande rio em meio a um por do sol.
A cabana se transformou em casa de pau-a-pique, mantendo a
limpeza e a organização existente nesse ambiente onde a mãe vivia com as duas
filhas. Adversidades do tempo, como tempestades de neve, o frio e o “uso na
lareira” foram preteridos por situações como chuva forte, rede e escuridão da
mata, respectivamente, por serem mais palpáveis às crianças ribeirinhas. Assim,
uma história adaptada ao cotidiano ribeirinho foi apresentada de maneira a não
prejudicar a narrativa, o imaginário, nem a essência original de “Rosa Rubra e
Alva Neve”.
Resultados e Discussão
A utilização dos bonecos funcionou como ilustração do conto
e afloramento do imaginário infantil, apreendendo a atenção e despertando o
fascínio pela história. Os bonecos foram feitos de lã, ressaltando as características
de cada personagem. Porém não possuíam rosto definido, para estimular ainda
mais a fantasia infantil. Movimentavam-se por uma paisagem insinuada num
cenário, enquanto o narrador contava a história. A música foi também uma forma
de apreensão de atenção, fazendo-se uso de um violão, teclado de sopro e uma
flauta doce.
As crianças que assistiam estavam sentadas, em forma de
semicírculo, de frente à “paisagem”. O palco montado dessa forma possibilitou
às crianças pequenas, até aproximadamente os sete anos, acompanhar e ver todos
os acontecimentos, como uma totalidade, por exemplo, quando ocorreu o movimento
de um boneco, ou quando, com cuidado, cortou-se a barba do anão. A atuação do
narrador procurou ser plenamente visível, fazendo parte dos acontecimentos do
palco 21.
Para a realização da história, a equipe narrativa constituiu-se
de narrador, auxiliar e dois auxiliares musicistas, na primeira comunidade, com
público de 70 crianças entre o primeiro e segundo setênio. Uma menor equipe,
composta por narrador e auxiliar, apresentou-se para o público de 30 crianças,
da mesma faixa etária, na segunda comunidade.
A equipe, com seriedade, humor e cuidado ao manejar os
bonecos, possibilitou que fosse criada uma atmosfera capaz de levar as crianças
com entusiasmo a vivenciar plenamente os acontecimentos apresentados.
Durante a apresentação, inicialmente as crianças se sentaram
distante do palco. Conforme a narrativa prosseguia os olhos das crianças
atentavam-se mais ao cenário aproximando-se como se quisessem entrar na
história. Fato esse verbalizado posteriormente, quando as crianças diziam o
nome dos personagens que haviam gostado mais e se identificado.
Um primeiro impulso surgia, quando as crianças viam e
tentavam pegar os bonecos, porém paravam como se a presença dos narradores e a
disposição diante do cenário montado, levassem as crianças a conterem seus
impulsos, pois sabiam que aquele imaginário que ali se construía era coletivo.
A figura do anão malvado, ocupando o pólo negativo do conto,
reverberou certo desconforto e indignação, quando Alva Neve e Rosa Rubra
cortavam a barba do anão que se metia em apuros enroscando sua longa barba em
diversos lugares. Comentários descontentes e diminutos raivosos podiam ser
ouvidos como que uma sonoplastia à narrativa.
A presença da onça negra (urso) brincalhona, na casa das
duas meninas, favorecia as risadas durante a apresentação. O rosnar da criatura
era suntuoso e o humor se fazia por ele. Também era a onça que, por fim, matou
o anão e transformou-se no belo príncipe superando ainda mais o agrado por essa
personagem.
Não diferente de outras histórias, a imagem do príncipe
causou grande resposta na platéia. Ressaltavam olhares admirados perante o
personagem.
As meninas protagonistas do conto traziam alegria ao
público. Uma vez que este se atentava ao cuidado de Rosa Rubra com a casa e no
carinho de Alva Neve com a mãe. A relação entre flores (rosa vermelha e branca)
com as meninas, fora bem recepcionada durante a apresentação. Logo após o
término do conto, observavam algumas crianças atentas a flores do jardim
desapercebidas até então. Um imaginário pode ter brotado naquele instante.
A narrativa do conto se fez com o cuidado de não perder o
enredo: as relações da mãe com a filha; mãe com a casa (limpeza e organização);
o descuido com a limpeza do anão com sua barba; dos desagrados com as meninas e
as demais relações existentes no conto.
A força da vivência das crianças pôde ser observada, durante
e após a apresentação, quando elas próprias, por sua iniciativa, montavam
pequenas encenações nas quais contavam qualquer história, e movimentavam
bonecos que estavam colocados à sua disposição 21. Observaram-se comentários
entusiasmados sobre o conto, correspondendo o despertar do alimento de sua alma
1, 3,
21.
Assim, pode-se afirmar que a apresentação teve boa recepção
nas comunidades. Não apenas pela novidade, mas pelos bonecos, cenário e
musicalidade. Esperou-se que somando à forma teatral de apresentação, o sucesso
deveu-se a uma resposta interior que reverberou em certa instância.
A criança pequena vive num estado de ingenuidade e de grande
alerta e confiança em relação ao mundo, acolhendo, sem resistência anímica,
tudo o que o mundo a proporciona. Nas vivências do primeiro setênio o ser
humano exprime uma total entrega confiante e ao encontrar proteção em seu meio
circundante, tem possibilidade de desenvolver uma profunda confiança na vida 3.
Levar um conto de fadas para crianças, neste período da vida, somado ao suposto
fato de que elas provavelmente não haviam tido contado com semelhante
experiência, foi uma forma de alimentar uma alma que se encontrava livre de
resistência podendo se aproveitar intensamente o alimento oferecido 1, 3.
Passerini 3 afirma que uma boa narrativa comove ativamente a
alma e dá asas aos sentimentos, ativando uma sã vontade e estimula a mente num
entre jogos de pensamentos 1. Com o conto de fadas bem narrado ativa-se e
intensifica-se toda uma série de experiências na criança: passam por sua alma,
uma atrás da outra, compaixão, crítica, tensão, alívio, tristeza, alegria,
medo, coragem, e outros sentimentos. O binômio saúde e educação é consagrado,
buscando a formação de seres humanos livres, solidários, engajados, criativos,
coerentes e saudáveis, com autonomia para gerenciar, em liberdade, suas vidas e
suas comunidades 1, 11, 12.
O contato com as crianças ribeirinhas foi efêmero. Duas
apresentações em dois dias, provavelmente, foram poucas perante o que se pode
esperar de um contínuo trabalho com os contos de fadas como se faz nas escolas
waldorf 2, 3, 21.
Percebeu-se certa necessidade de continuidade do trabalho quando
uma criança, no dia seguinte à apresentação em Nazaré, questionou se haveria
“história” novamente. Ao ser informada da partida da equipe NAPRA, a criança
ficou descontente. Demonstrou vontade em ouvir mais “histórias”, assim como a
maioria das crianças que faziam o mesmo comentário. Entretanto, o pouco contato
das crianças perante as vivências imagéticas apresentadas, pôde resplandecer
motivação e alegria de “ouvir” mais, sendo um despertar do imaginário local.
O trabalho dos contos de fadas aplicado a uma população tão
distante e singular, refletiu a universalidade da atuação dos contos de fadas
na alma humana 1, 3, 4. Mostrou que o aflorar ou o acrescentar no imaginário é
benéfico e é possível. Nem as crianças mais agressivas e desatentas desrespeitaram
a apresentação e puderam aprender na riqueza da observação e da fantasia.
Aprender no simples e deixar correr na fantasia perante o
redor do dia-a-dia são primordiais para criança de primeiro e segundo setênio
para um “apropriar-se do mundo” amplo e saudável, em que a criança brinque,
experiente, devaneie e se desenvolva.
Perante a vida contemporânea, tecnológica e fragmentada, a
visão global do ser humano é deixada de lado. Deve ser resgatada a imagem do
ser humano como ser espiritual, psicossomático, biográfico e social, traduzido
pela salutogênese 1, 4, 5, 7, 11, 12. Esperou-se que através da abordagem dos
contos de fadas aplicada à crianças, possa-se traçar nelas o resgate dessa
imagem, onde se desenvolvam em adultos livres, capazes de dirigir seu próprio
caminho 1, 5, 6,
7, 11, 12.
Considerações Finais
Quanto mais privamos as crianças de contos de dragões e
bruxas, etc, tanto mais fraca resultará sua alma de adulto. Mais tarde, quando
as asperezas e as durezas da vida golpearem, lhe faltará o valor e a firmeza de
haver aprendido por meio dos acontecimentos dos contos de fadas e seu
comportamento será como um barco sem leme, açoitado pelas ondas da vida 1, 3.
Contudo, um trabalho de continuidade, ou mesmo, estudos e
profissionais que sigam a perspectiva descrita poderão proporcionar maior
desenvolvimento nessas comunidades e em qualquer outro foco. Fazendo-se uso de
qualquer imagenologia, além dos contos de fadas, como mitos e outros folclores
que expressam singular atuação no ser humano. O que não se pode permitir é a
ausência deste alimento anímico primordial para o crescer da humanidade.
Referências
1. STEINER,
R. Os contos de fadas: sua poesia e sua interpretação. Tradução de Chirista
Glass. São Paulo: Antroposófica/Federação das Escolas Waldorf no Brasil, 2002.
2. LUBA, A.
Uma arte dos dias de ontem para revitalizar os recursos humanos de hoje. São
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Maldonado. Porto Alegre: L&PM, 2002. v.2
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Felipe Salles Neves Machado
Médico da
Casa Rafael.
Publicado na revista Ampliação da Arte Médica
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