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segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Artigo 02

NARRAÇÃO DE CONTO INFANTIL COMO ABORDAGEM TERAPÊUTICA EM COMUNIDADE RIBEIRINHA DA AMAZÔNIA



Diante da tecnologia contemporânea, informatizada e globalizada, anseia-se por uma outra forma de expressão. Busca-se uma “linguagem” que alimente, que fortaleça as próprias imagens do ser humano e que o leve aonde ele quer chegar. Os contos de fadas remetem a uma história de transformações quando são acolhidos pela compreensão do ser humano integral. As histórias carreiam um conhecimento sedimentado e acumulado por toda a humanidade 1,  2. Segundo Steiner os contos de fadas são um tesouro espiritual da humanidade fruto de vivências primordiais da existência humana em que sua atuação tem um efeito inconsciente na alma, alimentando-a.
Numa reflexão sobre a atuação dos contos, Steiner mencionou a relação dos contos com o inconsciente e ressaltou seu envolvimento nas profundezas da alma humana. Ao entrar em contato com a poesia e com a atmosfera dos contos, tem-se um sentimento primordial e elementar pertencendo aos efeitos inconscientes. Sentimento semelhante ocorre quando se depara com as comoventes tragédias das obras de arte 1,  3.
Os abalos das tragédias resultam do destino e de sua discrição, havendo uma proporção entre o enredo, o fio que deve ser fiado e desfeito pela tragédia e certas vivências individuais da alma humana no mundo exterior 1. Tem-se um sentimento de que, de um modo ou de outro, a alma fica envolvida neste ou naquele destino de vida ao vivenciar o trágico, tal como, foi apresentado.
Goethe tentou penetrar profundamente nas fontes e nos motivos da existência, quando quis transmitir uma vivência mais profunda da alma humana ele recorreu aos contos, falando das exigências mais elevadas da vida da alma. Assim o fez quando escreveu Serpente Verde da Bela Líria 1.
A magia da narrativa atua como alimento anímico, pois a alma humana tem uma necessidade inextinguível de deixar correr por suas veias espirituais o conteúdo dos contos de fadas, do mesmo modo que o organismo tem a necessidade de fazer circular em si mesmo uma substância nutritiva 1. Existe na alma humana algo idêntico a fome do organismo. Da mesma forma que se precisa de algo para eliminar a fome orgânica, é necessário saciar a fome anímica. Assim, surge o impulso de buscar num conto de fadas, num mito, ou nas artes um preenchimento consciente para a alma 3. O que se expressa não é aquilo que pode atingir o homem numa situação específica da vida, não é um círculo limitado da vivência humana, e sim algo tão profundo, que passa a ser comum a toda humanidade.
Uma das grandes contribuições para a Medicina e a Psicologia antroposófica foi o aprofundamento do estudo das leis biográficas. Segundo a qual o desenvolvimento humano se dá em ciclos de sete anos, denominados setênios. Os setênios são marcados por acontecimentos significativos no campo biológico e psicológico. Cada setênio apresenta características marcantes, as quais obviamente não se passam da mesma forma durante a fase toda, havendo aspectos de um período anterior que ainda se manifestam num posterior, bem como antecipações de características futuras 4.
Do nascimento aos sete anos são vistas profundas transformações relacionadas ao crescimento e desenvolvimento neuropsicomotor 5. O bebê se transforma numa criança com pensar lógico, com sentimentos, vontade própria e muita agilidade. A troca dos dentes e o início da alfabetização, em torno dos sete anos, marcam essa mudança de ciclo. Aos quatorze anos, a maioria dos jovens atingiu a puberdade, marcando um amadurecimento biológico com a maturidade sexual e aos 21 anos geralmente buscam a sua independência da família, já tendo alcançado a maioridade jurídica. Assim, a alma humana vai se transformando junto com o seu corpo físico-biológico 2,  3,  6.
Setzer 4 considera que a educação é melhor recebida pelos jovens e crianças no decorrer  dos três primeiros setênios. Já o adulto, pode armazenar informações, como é feito nas universidades, porém não pode mais ser educado. As falhas e omissões educacionais ocorridas na infância e adolescência podem ser compensadas, corrigidas, mas requerem um esforço da própria pessoa  2.
 Ao completar 21 anos de idade, mudanças e evoluções são possíveis apenas por meio da auto-educação, um processo trabalhoso, e que dura à vida toda. Encontra-se assim a importância da educação nos primeiros setênios da biografia humana 3.
Num aprofundamento sobre o primeiro setênio, onde a educação se consagra, os órgãos de percepção sensória da criança estão amplamente abertos e, a partir de uma intensa atividade em seu interior, ela responde com a repetição dos estímulos vindos do ambiente exterior, a imitação 6. Essa imitação é a grande força que a criança de primeiro  setênio tem disponível para a aprendizagem, inclusive a do falar, do fazer, do adequado ou impróprio no comportamento humano. E é por uma imitação mais sutil que ela cria, ainda sem consciência, o fundamento para a sua moralidade futura 5.
Nesse período do desenvolvimento o contato com os outros está favorecido, a criança esta rodeada de amigos. Encontra-se aberta a contatos, porém as amizades ainda são bastante superficiais, não atingindo efetivamente o outro; são muito mais destinadas a trazer o outro para o seu próprio mundo e brincar 6. Durante o primeiro setênio, a relação mais importante com o mundo exterior transcorre de fora para dentro. Todavia, as experiências adquiridas ainda não são centralizadas no eu, ou seja, no centro de sua consciência 6.
O ciclo de vida humana, para Steiner, tem início de vida com muita vitalidade física e pouca consciência. Em seguida há um período com maior maturação emocional e apropriação do mundo, seguido geralmente por uma fase de maturidade, sabedoria e desenvolvimento de consciência social, mas com baixa vitalidade. No fim da vida há um "desprender-se do mundo" 7 .
A Pedagogia Waldorf criada por Rudolf Steiner foi utilizada a princípio, no ano de 1919 em Stuttgart, na Alemanha, e preocupava-se com o desenvolvimento global dos alunos. A ênfase era dada às diferenças individuais e em como ajudar os alunos a descobrir em suas capacidades e realizarem seu potencial. Assim, o currículo escolar desenvolve-se em bases antropológico-antroposóficas, tendo em vista a evolução física, emocional e espiritual do ser humano 5, 8.
A proposta pedagógica para o primeiro setênio, considera que para o desenvolvimento da criança é preciso criar um ambiente propício à formação e não uma pré-escola com informações ou ensino formal. Na idade pré-escolar, a atuação da criança desenvolve-se em grande parte sob a simples forma do brincar. Brincando, a criança tem a oportunidade de satisfazer sua curiosidade, experimentando e descobrindo múltiplos materiais. O modo de brincar da criança é influenciado pela imitação e pela fantasia 6. Por isso, é dada muita importância aos contos de fadas e a outros recursos que estimulem sua fantasia 8.
A fantasia seria o correlato, no mundo físico, da clarividência espiritual. Daí a importância colocada no respeito à fantasia da criança, e do resgate dela no adulto intelectualizado. Segundo Steiner, a clarividência existia nos períodos antigos, e ela seria a faculdade responsável pela revelação do que existe de espiritual em cada criatura e cada processo da natureza. Era essa vivência que possibilitava a rendição e a devoção desse homem aos seres e processos da natureza, fazendo com que as leis do Cosmo fossem incorporadas ao ritual e ao culto 1, 2.
A visão antroposófica acredita que a arte é o caminho e a expressão do homem pelo Cosmo e no Cosmo. A pedagogia Waldorf foi metodologicamente apoiada na atuação artística do professor e de seus alunos. A intenção de Steiner foi de criar uma instituição educacional dirigida em bases sociais, buscando encontrar o espírito integral e o método de sua atuação docente na Antroposofia. Ele acreditava que isso seria possível pelo caráter humano e universal que residia nos princípios antroposóficos. Para ele, havia a necessidade de impulsos morais e espirituais nos métodos educacionais, que trabalhassem o interior das almas dos docentes, conduzindo-os aos problemas fundamentais da vida espiritual moderna que estariam conectados com a forma assumida pela cultura e pela civilização em curso na história humana 9.
A Pedagogia Waldorf, com seu enfoque artístico surgiu como uma possibilidade de desenvolvimento dessas faculdades. Por meio do uso da imaginação e da fantasia, a criança desenvolveria seu potencial criativo e as faculdades anímicas que lhe possibilitariam enxergar o mundo de forma artística. Na prática, ao ouvir um conto de fadas, por exemplo, a criança criaria imagens em sua alma. Essas imagens surgiriam no momento em que ela fosse solicitada a desenhar aquilo que lhe foi transmitido por intermédio das palavras. O exercício constante dessas atividades fortaleceria suas potencialidades de criação e estabeleceria sua maneira diferenciada de enxergar o mundo. Antes de trabalhar o intelecto, o professor atuaria nas forças da fantasia e da imaginação. Quando este intelecto fosse solicitado, posteriormente, poderia atuar ao unir conhecimento e arte 10.
Dessa forma, os conto de fadas pertencem aos efeitos inconscientes e brotam de modo espontâneo. Na criança, a essência humana ainda está ligada primordialmente à existência integral, ao todo da vida, ela necessita do conto de fadas como alimento de sua alma. Nessa abordagem, a criança ainda precisa estar criadoramente ativa, necessita gerar as próprias forças formadoras para seu crescimento e o desenvolvimento de todas as suas aptidões. Por isso a criança sente as imagens dos contos de fadas como maravilhoso alimento para sua alma, imagens em que ela se liga radicalmente à existência 1, 3, 5, 6.
De acordo com a Salutogênese (gênese da saúde, em contraposição a patogênese, gênese da doença 7 ), o indivíduo sadio é aquele que conseguiu formar, durante sua vida, um forte senso de coerência e este não depende apenas da cognição, da razão intelectual. Carece, também, de aprendizado e harmonia nos âmbitos emocional e volitivo, passíveis de trabalho institucional, por uma pedagogia que se interesse de maneira equalitária por todos esses níveis. Para se alcançar o bem-estar, a saúde em todos os seus âmbitos, propõe-se um caminho pedagógico que se ocupa, concretamente, da formação integral do ser humano, assim, vemos essa premissa inteiramente contemplada na pedagogia Waldorf e em outros estudiosos da Alemanha e da Suíça 11, 12.
 Costa 11 analisa esse novo paradigma relativo à saúde, a salutogênese, inaugurado por Aaron Antonovsky, em 1987, e o relaciona com a pedagogia Waldorf. Propôs uma complementaridade entre ambos, em que um pode, potencialmente, ser o sustentáculo e impulsionador do outro 11.
  Lindström 12 questiona o fato dos profissionais da saúde acreditarem que cabe a eles guiar os jovens nas intercorrências da vida para que enfim tornem-se adultos bem-sucedidos. Conforme o Chatter de Ottowa, em 1986, foram estabelecidos os princípios para o processo de promoção da saúde, em que capacitam as pessoas a terem controle sobre os fatores determinantes da saúde a fim poderem gozar de uma boa qualidade de vida 13.
Por mais de 50 anos a definição de saúde da OMS dizia a "saúde é não só a ausência de doença, mas um estado de completo bem-estar físico, mental e social" 14. Entretanto, as atuais ciências da saúde também modificaram sua estrutura e raciocínio, com o acréscimo, em 1987 por Mahler 15, de uma quarta dimensão, o bem-estar espiritual 12.
A Salutogênese sugere que, através do aprendizado das experiências de vida, pavimenta-se o desenvolvimento do senso de coerência 16, principal orientador e guia anti-stress da vida moderna contemporânea. Propõe que a promoção e manutenção da saúde de maneira abrangente dependem de como foi formada a visão de mundo, do sentido que tem a vida e do engajamento e envolvimento que se fez com esta 12.
Aprofundando os trabalhos de Dahlin et al 17, Lindström 12 ressalta que as pessoas têm à sua disposição recursos de caráter interno e externo, o que lhes facilita administrar a vida. Explicou que o senso de coerência manifesta-se com um sentimento global, abrangente, de que, o que quer que aconteça na vida, será algo que se pode entender, será algo que se pode administrar e será algo que, como tudo o mais, tem um sentido e um significado 17 dos indivíduos desenvolve-se ao longo de toda a infância e está razoavelmente estável após os 30 anos, quando então somente grandes eventos da vida podem perturbá-lo ou modificá-lo. A percepção que se tem de coerência baseia-se em fatores cognitivos, comportamentais e motivacionais. Os poucos estudos sobre senso de coerência que investigaram a adolescência, entre 13 e 15 anos, mostram que as meninas, por algum tempo, têm um senso de coerência bastante inferior ao dos meninos de mesma idade. Isso ocorre na mesma idade em que as meninas têm uma auto-estima bastante inferior à dos meninos, mais uma vez indicação do quanto o senso de coerência está relacionado ao bem estar mental 12, 16, 17.
A privação dos contos para crianças é como extinguir o melhor alimento para alma. Muitos pais se perguntam se deve ou não contar contos de fadas para a criança. Os preocupa se lhe fará mal tal ou qual passagem horrenda, pois no conto se relatam acontecimentos cruéis que poderiam perturbar a inocência da criança 3. Muitas vezes, pensando assim, se decide eliminar tais contos. Em conseqüência, se priva a criança do melhor alimento para a alma, porque nos verdadeiros contos de antigamente estão contidos acontecimentos da alma, que têm suas raízes nas forças construtivas da humanidade  1, 3.
Sabe-se que na bacia do Amazonas há comunidades que vivem isoladas e dependem do rio para sobrevivência e transporte, são chamados de ribeirinhos. Essa população é desprovida de diversos recursos básicos como saúde, educação e saneamento.
Rondônia tem 1,31 milhões de habitantes e cerca de um quarto mora na capital. Entre a década de 60 e 80 a população do estado cresceu nove vezes. O estado conta com 22.433 km de rodovias, sendo apenas 6,32% pavimentadas. O saneamento básico também é bastante precário. Segundo o IBGE – censo de 1998, a rede de esgoto alcançava apenas 3,5% dos domicílios do estado 18.
Os reflexos dessas condições insalubres aparecem na saúde da população: o estado é considerado pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) uma região endêmica de malária, leishmaniose e febre amarela. De acordo com dados do Conselho Federal de Medicina, conta com 4,59 médicos para cada grupo de 10 mil habitantes, menos da metade do que é considerado aceitável pela Organização Mundial de Saúde (OMS) 18.
As comunidades nas quais o trabalho foi realizado localizam-se no Estado de Rondônia, às margens do rio Madeira e nos seus afluentes, rio Preto e rio Machado, fazendo parte da bacia hidrográfica do Amazonas e, administrativamente ligadas ao município de Porto Velho 19.
A escassez de recursos mobilizou universitários que se organizam num Núcleo de Apoio a População Ribeirinha da Amazônia 20. Uma Organização não governamental (ONG) sem fins lucrativos que foi constituída com a finalidade de apoiar o desenvolvimento de populações ribeirinhas residentes em um trecho do Rio Madeira em Rondônia. Algumas das comunidades atendidas são Curicacas, Itacoã, Nazaré, Papagaios, Reserva extrativista do Lago Cuniã, Santa Catarina, São Carlos, Terra Caída e comunidades do rio Preto, Machado e Jamari.
O projeto é estruturado para atuar nas áreas da Saúde, Educação e Produção. No ano de 2005 a equipe foi composta de profissionais e alunos de diferentes cursos, a saber, Odontologia, Medicina, Engenharia de Produção, Farmácia, Fisioterapia, Enfermagem, Terapia Ocupacional, Psicologia, Biologia, Direito, Nutrição, Imagem e Som, Ciências Sociais, Física e Veterinária provenientes de mais de 10 universidades, públicas e privadas, do Estado de São Paulo 20.
Os acadêmicos são orientados por profissionais do NAPRA e colaboradores durante o ano, inclusive nas interações em Rondônia no mês de julho. Para preparação da equipe são realizadas reuniões mensais de desenvolvimento, que viabilizam discussão de projetos, interações dos participantes e planejamento de captação de recursos 19, 20.
As equipes multiprofissionais realizam atendimento médico e odontológico, análises clínicas e laboratoriais, prevenção em saúde, educação ambiental e reciclagem de lixo, apoio à formação de professores, formação de multiplicadores locais, desenvolvimento cultural e desenvolvimento de produção e comercialização.
Esperou-se neste trabalho traçar um caminho pedagógico-terapêutico, utilizando-se dos contos de fadas, fortalecendo o binômio saúde e educação, enfocando a formação de seres humanos livres e salubres, conforme o proposto pelos princípios da salutogênese 1, 11, 12.
O conto abordado foi “Alva Neve e Rosa Rubra” dos irmãos Grimm. A escolha do conto se deu pela aproximação da narrativa de Alva Neve e Rosa Rubra, com a realidade dos ribeirinhos, o público alvo. Estava presente uma relação harmônica entre as personagens e o ambiente, aproximando-se dos objetivos da ONG que procuram um melhor relacionamento da comunidade com o ambiente em que vivem.
A narrativa do conto descreve uma floresta e uma cabana onde moram duas meninas com a mãe. Em frente da cabana havia um jardim de flores brancas e vermelhas, as meninas se pareciam com as flores e se chamavam Alva Neve e Rosa Rubra. A relação domiciliar era harmônica, bem como, com a natureza. Enquanto Rosa Rubra se dedicava mais aos cuidados da casa, Alva Neve cuidava de sua mãe. A relação das meninas com a natureza era tamanha que elas passavam horas passeando pela floresta. Às vezes quando caia a noite e elas não haviam voltado pra casa, a mãe não se preocupava porque sabia que elas estariam bem dormindo na floresta.
Certo dia de inverno, um grande urso bate na porta da cabana. Num primeiro instante as meninas se assustaram. Chegaram, até mesmo, a se esconderem atrás da cama. A mãe as explicou que o urso não iria fazer mal a ninguém e que, provavelmente ele estaria com frio e procurava por um abrigo. A mãe permitiu que ele ficasse perto da lareira. Em poucos minutos as meninas já tinham perdido o medo e começaram a brincar com o urso. Essa cena ocorria diariamente, todas as noites tinha-se a espera por ele.
Quando a primavera iniciava-se, o urso se despediu de todos e disse que tinha que voltar pra floresta para impedir que a destruíssem em busca de ouro. As meninas mesmo tristonhas aceitaram a decisão do urso.
Em uma das andanças pela floresta, as garotas ouviram certo resmungo. Foram ver o que acontecia e se depararam com um anão escarlate com a barba enroscada em um tronco de madeira. Ele tinha um grande saco e não deixava ninguém ver o que tinha nele. Como eram boas meninas elas tentaram, incessantemente, libertar o anão; por fim, precisaram cortar a barba para poder soltá-lo. O anão mal agradecido, desde o começo, só gritou e repudiou as duas meninas. “Meninas burras, como sois estúpidas”. Cena semelhante se repetiu, ora enroscando a barba no anzol ora em uma pedra.
Num outro dia de passeio, das meninas se depararam com o anão enroscado com sua barba na pedra, quando apareceu um urso furioso. O anão com muito medo do urso disse pra ele comer as meninas porque elas eram maiores e mais suculentas. Todavia, o urso deu uma forte patada no anão que acabou matando a pequena criatura. As garotas estavam com muito medo do urso até que reconheceram que o urso que ali estava era o grande amigo de inverno.
Com a morte do anão, como num passe de mágica o urso se transformou num belo príncipe. Contou para Alva Neve e Rosa Rubra que ele tinha sido enfeitiçado pelo anão e por fim, acabou casando-se com Alva Neve e seu irmão com Rosa Rubra. A mãe continuou a morar na antiga cabana recebendo sempre visitas de suas filhas  22,  23.

Objetivo
Oferecer às crianças as imagens dos contos de fadas e deixar aflorar sua narrativa no imaginário infantil local. Visando o despertar, por meio dos contos de fadas, impulsos anímicos que ecoem na formação de seres humanos solidários, engajados, criativos, coerentes e saudáveis, com autonomia para gerenciar, em liberdade, suas vidas e suas comunidades.

Métodos
Método
Participantes: aproximadamente 100 crianças, com faixa etária entre 05 e 12 anos (primeiro e segundo setênios 4 ). As comunidades contempladas foram a de São Carlos do Jamari e de Nazaré, ambas distrito da capital Porto Velho- RO.
Materiais: bonecos de lã, cenário desenhados em pano, instrumentos musicais e materiais naturais como galhos grossos de várias formas e tamanhos, cobertos com panos e papéis coloridos, assim como cascas de árvores, folhas, pedras que somavam o desenho do cenário. A “paisagem” construída buscava a aproximação da narrativa com a floresta amazônica.
Procedimentos: primeiramente buscou-se um conto que se aproximasse das condições dos ribeirinhos, visando facilitar a identificação das crianças. Após a escolha construí-se um cenário e os personagens da história.
Aos chegar nas comunidades alvo foi conversado com as diretoras de duas escolas rurais, em comunidades ribeirinhas diferentes. A apresentação foi teatral e adaptada, após a apresentação foram feitas brincadeiras de roda e cantorias com as crianças.

Adaptação do Conto
A história original passou por algumas adaptações, embora que controversas pela literatura 1, 3, para melhor compreensão por parte do público. Houve modificações verbais e nas personagens. Dessa forma, optou-se por alterar os nomes originais de “Alva Neve”, “Rosa Rubra”, e “Urso” para “Branca Nuvem”, “Rosa Flor” e “Onça Negra”, respectivamente.
A floresta foi transmitida pelo cenário (desenho) com características tropicais, como araras, bromélias, árvores típicas às margens de um grande rio em meio a um por do sol.
A cabana se transformou em casa de pau-a-pique, mantendo a limpeza e a organização existente nesse ambiente onde a mãe vivia com as duas filhas. Adversidades do tempo, como tempestades de neve, o frio e o “uso na lareira” foram preteridos por situações como chuva forte, rede e escuridão da mata, respectivamente, por serem mais palpáveis às crianças ribeirinhas. Assim, uma história adaptada ao cotidiano ribeirinho foi apresentada de maneira a não prejudicar a narrativa, o imaginário, nem a essência original de “Rosa Rubra e Alva Neve”.

Resultados e Discussão
A utilização dos bonecos funcionou como ilustração do conto e afloramento do imaginário infantil, apreendendo a atenção e despertando o fascínio pela história. Os bonecos foram feitos de lã, ressaltando as características de cada personagem. Porém não possuíam rosto definido, para estimular ainda mais a fantasia infantil. Movimentavam-se por uma paisagem insinuada num cenário, enquanto o narrador contava a história. A música foi também uma forma de apreensão de atenção, fazendo-se uso de um violão, teclado de sopro e uma flauta doce.
As crianças que assistiam estavam sentadas, em forma de semicírculo, de frente à “paisagem”. O palco montado dessa forma possibilitou às crianças pequenas, até aproximadamente os sete anos, acompanhar e ver todos os acontecimentos, como uma totalidade, por exemplo, quando ocorreu o movimento de um boneco, ou quando, com cuidado, cortou-se a barba do anão. A atuação do narrador procurou ser plenamente visível, fazendo parte dos acontecimentos do palco 21.
Para a realização da história, a equipe narrativa constituiu-se de narrador, auxiliar e dois auxiliares musicistas, na primeira comunidade, com público de 70 crianças entre o primeiro e segundo setênio. Uma menor equipe, composta por narrador e auxiliar, apresentou-se para o público de 30 crianças, da mesma faixa etária, na segunda comunidade.
A equipe, com seriedade, humor e cuidado ao manejar os bonecos, possibilitou que fosse criada uma atmosfera capaz de levar as crianças com entusiasmo a vivenciar plenamente os acontecimentos apresentados.
Durante a apresentação, inicialmente as crianças se sentaram distante do palco. Conforme a narrativa prosseguia os olhos das crianças atentavam-se mais ao cenário aproximando-se como se quisessem entrar na história. Fato esse verbalizado posteriormente, quando as crianças diziam o nome dos personagens que haviam gostado mais e se identificado.
Um primeiro impulso surgia, quando as crianças viam e tentavam pegar os bonecos, porém paravam como se a presença dos narradores e a disposição diante do cenário montado, levassem as crianças a conterem seus impulsos, pois sabiam que aquele imaginário que ali se construía era coletivo.
A figura do anão malvado, ocupando o pólo negativo do conto, reverberou certo desconforto e indignação, quando Alva Neve e Rosa Rubra cortavam a barba do anão que se metia em apuros enroscando sua longa barba em diversos lugares. Comentários descontentes e diminutos raivosos podiam ser ouvidos como que uma sonoplastia à narrativa.
A presença da onça negra (urso) brincalhona, na casa das duas meninas, favorecia as risadas durante a apresentação. O rosnar da criatura era suntuoso e o humor se fazia por ele. Também era a onça que, por fim, matou o anão e transformou-se no belo príncipe superando ainda mais o agrado por essa personagem.
Não diferente de outras histórias, a imagem do príncipe causou grande resposta na platéia. Ressaltavam olhares admirados perante o personagem.
As meninas protagonistas do conto traziam alegria ao público. Uma vez que este se atentava ao cuidado de Rosa Rubra com a casa e no carinho de Alva Neve com a mãe. A relação entre flores (rosa vermelha e branca) com as meninas, fora bem recepcionada durante a apresentação. Logo após o término do conto, observavam algumas crianças atentas a flores do jardim desapercebidas até então. Um imaginário pode ter brotado naquele instante.
A narrativa do conto se fez com o cuidado de não perder o enredo: as relações da mãe com a filha; mãe com a casa (limpeza e organização); o descuido com a limpeza do anão com sua barba; dos desagrados com as meninas e as demais relações existentes no conto.
A força da vivência das crianças pôde ser observada, durante e após a apresentação, quando elas próprias, por sua iniciativa, montavam pequenas encenações nas quais contavam qualquer história, e movimentavam bonecos que estavam colocados à sua disposição 21. Observaram-se comentários entusiasmados sobre o conto, correspondendo o despertar do alimento de sua alma 1,  3,  21.
Assim, pode-se afirmar que a apresentação teve boa recepção nas comunidades. Não apenas pela novidade, mas pelos bonecos, cenário e musicalidade. Esperou-se que somando à forma teatral de apresentação, o sucesso deveu-se a uma resposta interior que reverberou em certa instância.
A criança pequena vive num estado de ingenuidade e de grande alerta e confiança em relação ao mundo, acolhendo, sem resistência anímica, tudo o que o mundo a proporciona. Nas vivências do primeiro setênio o ser humano exprime uma total entrega confiante e ao encontrar proteção em seu meio circundante, tem possibilidade de desenvolver uma profunda confiança na vida 3. Levar um conto de fadas para crianças, neste período da vida, somado ao suposto fato de que elas provavelmente não haviam tido contado com semelhante experiência, foi uma forma de alimentar uma alma que se encontrava livre de resistência podendo se aproveitar intensamente o alimento oferecido 1,  3.
Passerini 3 afirma que uma boa narrativa comove ativamente a alma e dá asas aos sentimentos, ativando uma sã vontade e estimula a mente num entre jogos de pensamentos 1. Com o conto de fadas bem narrado ativa-se e intensifica-se toda uma série de experiências na criança: passam por sua alma, uma atrás da outra, compaixão, crítica, tensão, alívio, tristeza, alegria, medo, coragem, e outros sentimentos. O binômio saúde e educação é consagrado, buscando a formação de seres humanos livres, solidários, engajados, criativos, coerentes e saudáveis, com autonomia para gerenciar, em liberdade, suas vidas e suas comunidades 1, 11, 12.
O contato com as crianças ribeirinhas foi efêmero. Duas apresentações em dois dias, provavelmente, foram poucas perante o que se pode esperar de um contínuo trabalho com os contos de fadas como se faz nas escolas waldorf  2,  3,  21.
Percebeu-se certa necessidade de continuidade do trabalho quando uma criança, no dia seguinte à apresentação em Nazaré, questionou se haveria “história” novamente. Ao ser informada da partida da equipe NAPRA, a criança ficou descontente. Demonstrou vontade em ouvir mais “histórias”, assim como a maioria das crianças que faziam o mesmo comentário. Entretanto, o pouco contato das crianças perante as vivências imagéticas apresentadas, pôde resplandecer motivação e alegria de “ouvir” mais, sendo um despertar do imaginário local.
O trabalho dos contos de fadas aplicado a uma população tão distante e singular, refletiu a universalidade da atuação dos contos de fadas na alma humana 1, 3, 4. Mostrou que o aflorar ou o acrescentar no imaginário é benéfico e é possível. Nem as crianças mais agressivas e desatentas desrespeitaram a apresentação e puderam aprender na riqueza da observação e da fantasia.
Aprender no simples e deixar correr na fantasia perante o redor do dia-a-dia são primordiais para criança de primeiro e segundo setênio para um “apropriar-se do mundo” amplo e saudável, em que a criança brinque, experiente, devaneie e se desenvolva.
Perante a vida contemporânea, tecnológica e fragmentada, a visão global do ser humano é deixada de lado. Deve ser resgatada a imagem do ser humano como ser espiritual, psicossomático, biográfico e social, traduzido pela salutogênese 1, 4, 5, 7, 11, 12. Esperou-se que através da abordagem dos contos de fadas aplicada à crianças, possa-se traçar nelas o resgate dessa imagem, onde se desenvolvam em adultos livres, capazes de dirigir seu próprio caminho 1,  5,  6,  7,  11, 12.
Considerações Finais
Quanto mais privamos as crianças de contos de dragões e bruxas, etc, tanto mais fraca resultará sua alma de adulto. Mais tarde, quando as asperezas e as durezas da vida golpearem, lhe faltará o valor e a firmeza de haver aprendido por meio dos acontecimentos dos contos de fadas e seu comportamento será como um barco sem leme, açoitado pelas ondas da vida 1, 3.
Contudo, um trabalho de continuidade, ou mesmo, estudos e profissionais que sigam a perspectiva descrita poderão proporcionar maior desenvolvimento nessas comunidades e em qualquer outro foco. Fazendo-se uso de qualquer imagenologia, além dos contos de fadas, como mitos e outros folclores que expressam singular atuação no ser humano. O que não se pode permitir é a ausência deste alimento anímico primordial para o crescer da humanidade.

Referências
1.            STEINER, R. Os contos de fadas: sua poesia e sua interpretação. Tradução de Chirista Glass. São Paulo: Antroposófica/Federação das Escolas Waldorf no Brasil, 2002.
2.            LUBA, A. Uma arte dos dias de ontem para revitalizar os recursos humanos de hoje. São Paulo. Disponível em <http://www.sab.org.br> Acesso em 25 out. 2005.
3.            PASSERINI, S. P. O fio de Ariadne: múltiplas formas narrativas e desenvolvimento infantil segundo a abordagem antroposófica de Rudolf Steiner. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996.
4.            SETZER, S. A. L. A educação pode contribuir na prevenção do consumo de drogas?. Arte médica ampliada, ano XIX, No. 3, São Paulo, 1999.
5.            SOCIEDADE ANTROPOSÓFICA BRASILEIRA. São Paulo,  Apresenta informações virtuais sobre a pedagogia waldorf. Disponível em <http://www.sab.org.br> Acesso em 14 out. 2005.
6.            ESCOLA WALDORF JARDIM DAS AMORAS. Campinas. Apresenta informações virtuais sobre a proposta pedagógica de ensino para o jardim das amoras. Disponível em < http://www.jardimdasamoras.com.br/pagina2%20bordas.htm >. Acesso em 28 out. 2005.
7.            SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA ANTROPOSOFIA. São Paulo. Apresenta informações virtuais sobre a Antroposofia. Disponível em <http://www.medicinaantroposofica.com.br>. Acesso em 14 out. 2005
8.            ORGANIZAÇÃO NÃO GOVERNAMENTAL ARTE SOCIAL. São Paulo. Apresenta informações virtuais sobre a Pedagogia Waldorf. Disponível em <http://www.artesocial.org.br>. Acesso em 14 out. 2005..
9.            CENTRO DE PESQUISAS DO IMAGINÁRIO, CULTURANÁLISE DE GRUPO E EDUCAÇÃO - FE/USP. A pedagogia waldorf e sua contribuição dentro do Imaginário, Cultura e Educação. In: ENCONTRO SOBRE IMAGINÁRIO, CULTURA E EDUCAÇÃO, 2., Maio 2000, Florianópolis. Anais. Disponível em <http://www.anaba.com.br>. Acesso em 31 out. 2005.
10.          STEINER, R. The new art of Education, Anthroposofical Publishing CO. London, Anthroposophic Press, New York, 1928.
11.          DA COSTA, E. M. G. Da pedagogia waldorf à salutogênese. 2004. Tese (Mestrado na Área de educação) - Universidade de Sorocaba , UNISO.
12.          LINDSTRÖM, B. O significado de resiliência. Adolescencia Latinoamericana, Porto Alegre, v.2 n.3 abr. 2001.
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22.          GRIMM, I. Contos de Grimm: O príncipe sapo e outras histórias. Tradução Zaida Maldonado. Porto Alegre: L&PM, 2002. v.1
23.          GRIMM, Irmãos. Contos de Grimm: A Bela Adormecida e outras histórias. Trad. Zaida Maldonado. Porto Alegre: L&PM, 2002. v.2

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Felipe Salles Neves Machado
Médico  da Casa Rafael.
Publicado na revista Ampliação da Arte Médica

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