Era uma vez um rei tão poderoso, tão amado pelo seu povo e
tão respeitado pelos seus vizinhos e aliados que se podia dizer que era o mais
feliz de todos os monarcas. Além do
mais, ele teve a sorte de casar-se com uma princesa linda e igualmente virtuosa
e os dois esposos viviam em união perfeita e desse casamento nasceu uma única
criança, uma linda filha, porém tão encantadora, que os pais viviam num
verdadeiro êxtase.
No palácio real, havia abundância de tudo e muito bom gosto. Os ministros eram muito sagazes e habilidosos, os cortesãos, muito dedicados, e os empregados, muito leais. Na grande estrebaria, havia os mais soberbos cavalos jamais vistos e com os melhores arreios, embora todos estranhassem que o mais importante animal fosse um asno com orelhas compridíssimas. Mas não fora por um mero capricho que o rei lhe dera tamanha distinção. O asno era merecedor de todas as regalias e honras, pois, na verdade, se tratava de um asno com poderes mágicos. Todo dia, ao nascer do sol, a sua baia estava coberta de moedas de ouro, que o rei mandava colher.
Mas como a vida não é para sempre um mar de rosas, certo dia a rainha caiu de cama, com uma doença desconhecida que nenhum médico era capaz de curar. No palácio, baixou uma intensa tristeza. O rei foi a todos os templos do castelo e fez promessas, em que se comprometia a dar sua própria vida em troca da cura da amada rainha. Mas tudo foi em vão.
Certo dia, sentindo que ia morrer, a rainha chamou o marido e lhe disse, aos prantos:
– Meu fiel esposo e amigo quero fazer-lhe antes de ir-me um pedido: se de novo se casar…
Nesse ponto, o rei a interrompeu, apartando-lhe as mãos e desfazendo-se em lágrimas, como que para dizer-lhe que jamais sequer pensara nisso.
– Não, não, minha fiel esposa e amiga, em vez disso, peça-me que a siga na tumba!
– O reino – continuou a rainha com tranquila firmeza – precisa de sucessores e eu só lhe dei uma filha. Portanto terá que se casar de novo, e eu lhe peço que só se case se encontrar uma princesa mais bonita e mais bem-dotada do que eu. Se me jurar isso morrerei feliz e em paz.
Parece que a rainha tinha muito amor próprio, e que se forçou o marido a essa promessa, foi porque não cogitava que pudesse haver outra princesa que excedesse em beleza e dotes. Porém, o rei jurou e ela, alguns minutos depois, morreu.
O rei sofreu imensamente. Durante vários dias, só chorou e se lamentou. Mas, com o tempo, se foi conformando, e, certo dia, os seus ministros lhe mandaram uma representação, pedindo-lhe que se casasse de novo. Tal pedido o fez desfazer-se em lágrimas pelo pesar reavivado e respondeu que jurara à esposa que só voltaria a se casar quando aparecesse uma princesa mais bonita e mais bem-dotada do que a falecida o que era praticamente impossível. Os ministros disseram que a beleza era algo supérfluo, e que para o bem do reino bastava uma rainha virtuosa e fértil, que lhe desse muitos filhos homens e, assim, tranquilizasse o povo quanto a sucessão. Também disseram que a princesa real tinha todos os atributos para se tornar uma grande rainha, mas, por ser mulher, logo se casaria com um príncipe estrangeiro, o que poria em risco a coroa, já que o rei não tinha filhos que lhe sucedessem.
O rei ouviu tudo e meditou sobre aqueles argumentos racionais, prometendo que voltaria a se casar. E, de fato, procurou, entre as princesas em idade de casar uma que lhe fosse conveniente. Todos os dias, os ministros lhe traziam retratos de princesas dos reinos das cercanias – porém o rei respondia negativamente com a cabeça. Nenhuma chegava aos pés da sua amada falecida.
O tempo passava e, à medida que passava, a princesa real ficava cada vez mais linda, excedendo a própria mãe. O rei reparava naquilo, e como já não estava muito no seu juízo perfeito, começou a sentir pela filha um amor profundo e forte, que não se assemelhava ao amor paterno. Enfim, não conseguindo mais esconder os seus sentimentos, declarou que só se casaria com ela.
A jovem princesa, que era muito virtuosa, quase desfaleceu quando ouviu a declaração de rei seu pai. Lançou sê-lhe aos pés e suplicou eloquentemente a não cometer aquele crime hediondo.
O rei foi consultar um druida para ficar com a consciência tranquila, e o druida, que era muito ambicioso e só queria tornar-se um dos favoritos do rei, convenceu-o de que não havia mal algum naquele casamento e que, além de ser vantajoso para todos, era até mesmo um ato de crueldade. O rei o abraçou e retornou ao palácio mais decidido ainda, e mandou que a princesa se preparasse para as bodas.
A princesa, em desespero, só ocorreu uma idéia: ir consultar a fada Lilás, sua madrinha. Então, partiu naquela noite mesmo, numa espécie de carro puxado por um cordeiro que conhecia todos os caminhos. A fada gostava muito da princesa e logo que a viu chegar lhe disse que já sabia tudo.
– É claro, minha menina, que seria um grande erro casar-se com o seu pai. Porém, eu vejo um jeito de arranjar as coisas sem que haja um confronto. Concorde com as bodas, mas lhe exija como condição que ele lhe dê um vestido da cor do tempo. Nem com todas as riquezas que possui, nem com todo o seu poder, ele conseguirá semelhante vestido.
A princesa agradeceu à sua madrinha, retornou ao palácio e disse ao rei que se casaria com ele, contando que lhe desse um vestido com a cor do tempo. O rei ficou tão maravilhado com a resposta, que mandou vir os mais habilidosos costureiros do reino, e lhes ordenou que fizessem o vestido, sob pena de serem enforcados.
Mas isso não foi necessário, porque após dois dias os costureiros trouxeram o vestido, leve como as manhãs e azul como o céu. A princesa ficou desapontada e correu de novo ao encontro da madrinha:
– O que fazer agora? – Perguntou-lhe.
– Peça gora um vestido da cor da lua – responde-lhe a fada.
E a princesa real pediu ao rei o vestido da cor da lua, que foi encomendado de imediato. No dia seguinte, o vestido foi entregue e era tal e qual da cor da lua. A princesa se desesperou e de novo se lamentava quando a fada apareceu e disse:
-Se pedir um vestido da cor do sol, tenho certeza de que o rei ficará muito embaraçado, pois é impossível fazer um vestido da cor do sol – e, pelo menos, você ganhará tempo.
A princesa fez o que a fada lhe recomendou – pediu ao rei um vestido da cor do sol, que foi de pronto, encomendado. E para que os costureiros o pudessem fazer, o rei lhes deu todos os diamantes e rubis da sua própria coroa para enfeitar o vestido. Quando trouxeram, todos os habitantes do palácio tiveram que fechar os olhos, tamanho era o seu esplendor.
A moça se sentiu perdida, e sob o pretexto de que o vestido lhe havia feito mal aos olhos, retirou-se para seus aposentos, onde a guardava a boa fada.
-Minha menina, não se desespere! Nem tudo está perdido! – disse-lhe ela. – O rei está obcecado e nossos estratagemas falharam. Mas acho que se pedir a pele do asno que fornece todo o ouro que é sustento da riqueza dessa corte, ele negará. Vá pedir-lhe a pele do asno.
A jovem, alegre e cheia de esperanças, correu e foi pedir ao pai a pele do asno. O rei ficou espantado com aquele capricho, mas na hora ordenou que sacrificassem o asno, cuja pele foi dada à princesa.
A princesa subiu, correndo para seus aposentos e se desfez em lágrimas, mas sua madrinha conseguiu acalmá-la facilmente.
-Mas o que há menina? Pois fique sabendo que isso foi ótimo. Envolva-se na pele do asno e saia pelo mundo. Deus recompensa quem tudo sacrifica pela virtude. Vá. Tudo o que lhe pertence a acompanhará, eu lhe garanto. Fique com a minha varinha de condão. Sempre que a bater no chão, verá surgirem as coisas de que estiver precisando.
A princesa deu um abraço apertado na madrinha, suplicando-lhe que não a abandonasse jamais. Em seguida, envolveu-se na pele do asno, passou fuligem no rosto e saiu do palácio sem que ninguém a notasse.
O desaparecimento da princesa foi um verdadeiro escândalo. O rei, que já ordenara uma esplêndida festa para o dia de suas bodas, mergulhou no desespero. Mandou mais de mil mosqueteiros saírem à procura da filha. Mas tudo foi em vão. A varinha de condão tinha a fantástica propriedade de tornar a princesa invisível a todos seus perseguidores.
Assim que saiu do palácio, a princesa foi andando sem rumo, até muito longe, à procura de uma casa onde pudesse empregar-se. Todo mundo lhe dava esmolas, mas ninguém a recebia na sua casa. Aquele rosto cheio de fuligem e aquela pele de asno fazia as pessoas se sentirem nojo dela. Por fim, chegou ás cercanias de uma cidade onde havia granja. Naquele exato local, estavam a procura de uma empregada que executasse as tarefas mais grosseiras, como lavar a pocilga, guardar os gansos e outras coisas do tipo. Vendo aquela maltrapilha tão suja, a dona da granja se dispôs a empregá-la, coisa que a princesa aceitou de pronto, de tão cansada que estava.
A mísera princesa teve de ficar num canto da cozinha, com toda a criadagem a caçoar dela da maneira mais estúpida – tudo devido à pele de asno que ela usava. Enfim, acabou por se acostumar com aquilo, e caprichava tanto na execução das suas tarefas, que a dona da granja começou a vê-la com melhores olhos.
Certo dia em que sentara à beira de um tanque, resolveu mirar-se no espelho d’água e assustou-se com sua horrível aparência. Lavou-se e ficou clara como era – linda e branca como a lua. Algum tempo depois, teve que vestir de novo a medonha pele de asno a fim de voltar para casa.
No dia seguinte, não havia trabalho, porque era dia de festa, então a princesa tocou a varinha, e a sua frente surgiram os seus pertences, e ela se divertiu em pentear-se e enfeitar-se com os seus mais lindos ornamentos. O seu quarto era tão pequenininho que as caldas dos vestidos não se podiam desdobrar. Com justo mérito, a princesa se admirou no espelho e teve, dessa forma, um dia feliz. Depois desse dia, resolveu que em todas as horas vagas poria os seus lindos vestidos e se enfeitaria – mas sempre às escondidas, dentro das quatro paredes do seu quartinho. Por vezes, ficava tão encantadoramente linda que até suspirava por não haver ninguém que a visse.
Num dia de folga , em que Pele de Asno (chamavam-na por esse nome) pusera o seu vestido da cor do sol, ocorreu de ali parar o filho do rei, que fora à caça. Era um belo príncipe, o poso idolatrava e os seus pais o adoravam. A dona da granja mostrou-lhe tudo, as aves, as plantações, e como o príncipe era muito curioso, percorreu a propriedade toda, examinando tudo. Mas quando passava por um corredor, encontrou uma porta trancada e resolveu espiar pelo buraco da fechadura: vislumbrou, lá dentro, uma beleza que o deixou fascinado. Era Pele de Asno com seu vestido da cor do Sol.
Muito intrigado, o príncipe saiu dali e foi perguntar quem ocupara aquele quarto escuro. Responderam-lhe que era uma pastora imunda chamada Pele de Asno, pois sempre vestia uma pele desse animal; disseram também que era tão suja que ninguém tinha vontade de aproximar-se dela, nem de falar-lhe, e que só por caridade a tinham empregado como pastora de carneiros e gansos.
O príncipe logo percebeu que era inútil inquirir aquelas pessoas tolas e voltou para a corte com o coração palpitando de transtorno. Não conseguia tirar da cabeça a fascinante deusa vislumbrada por alguns segundos pelo buraco da fechadura. Arrependeu-se amargamente de não ter arrombado a porta. E tamanha foi a sua excitação que ficou com uma febre altíssima. A rainha se desesperou com o estado do seu filho único e prometeu milhões de recompensa quem pudesse curá-lo.
Todos os melhores médicos do reino acudiram e, depois de vários exames, concluíram que a doença do príncipe provinha de uma inquietude moral. Assim que a rainha ficou sabendo disso foi perguntar ao filho o que realmente se passava no seu coração. Disse-lhe que o que quer que fosse ela faria tudo por amor a ele; que se queria a coroa, com certeza o seu pai daria sem problema algum; que se queria tomar por esposa alguma princesa, a tomaria, mesmo que fosse necessário declarar uma guerra. Mas que, pelo amor de Deus, não continuasse daquele jeito e lhe confessasse tudo, senão também ela morreria.
-Minha querida mamãe – respondeu o príncipe com voz agonizante – não sou um filho desnaturado que quer subir ao trono quando seu pai ainda está vivo. Pelo contrário: gostaria muito que ele vivesse por muitos anos mais.
-Eu sei meu filhinho, mas sua vida é o que temos de mais precioso e queremos saber qual é o motivo do seu desassossego, que tudo faremos para salvar a vida, pois salvando a sua vida estaremos salvando também a nossa.
-Tudo bem mamãe, vou contar-lhe a verdade. O que quero é que Pele de Asno me faça um bolo para saciar a minha vontade.
A rainha ficou estupefata ao ouvir aquele pedido tão estranho, ainda mais com a menção de uma pessoa toda desconhecida e de nome tão feio.
-Meu filho, quem é Pele de Asno?
Um dos palacianos que já estivaram na granja respondeu:
-Majestade, Pele de Asno é uma pastora imunda, encardida, que guarda os carneiros e gansos numa granja de propriedade real.
-Pouco importa! – disse a rainha. – Talvez o meu filho numa das suas caçadas, tenha comido um bolo feito por ela e agora está com desejo doentio. Mandem Pele de Asno preparar o mais rápido possível, o bolo.
Cumpre dizer que, no instante em que o príncipe olhou pelo buraco da fechadura, quando visitou a granja, a princesa o percebeu, e depois, pela janelinha, pode vê-lo quando ele se afastava – e admirou o porte e a beleza viril do príncipe. Alguns dizem até que suspirou – e que desse dia em diante sempre suspirava quando se lembrava daquela cena. O que quer que seja, quando Pele de Asno recebeu a ordem de preparar o bolo, ficou agitadíssima e foi correndo fechar no seu quartinho para pôr a mão na massa. Para tanto, lavou-se, penteou-se pôs seu vestido mais bonito e começou a amassar a mais branca e pura farinha com a manteiga e os ovos mais frescos e amarelinhos. Num dado momento, não se sabe se por obra do acaso ou se de propósito, deixou cair na massa um anel que tinha no dedo. Uma vez pronto o bolo, escondeu-se de novo sob a medonha e repugnante pele, e abriu a porta para entregar aos mensageiros o que lhe fora encomendado, e, tímida, lhes perguntou como passava o príncipe. Os mensageiros, muito soberbos, nem lhe responderam. Pegaram o bolo e se foram a galope para o palácio.
O príncipe recebeu ávido, o bolo, e o comeu com tamanha voracidade que os médicos ficaram estupefatos, não achando aquilo nem um pouco natural. Alguns segundos depois começou a tossir desesperadamente, como se algo o asfixiasse. Era o anel. Tirou-o da boca e viu que se tratava de uma jóia rara e linda, que só poderia caber num dedinho de extrema delicadeza.
O príncipe o beijou inúmeras vezes e pôs à sua cabeceira, para de novo contemplá-lo e beijá-lo sempre que ficava sozinho.
Agora o que atormentava era o desejo de conhecer a dona do anel, porém recava contar o que vira pelo buraco da fechadura, pois tinha a certeza de que todos zombariam dele. E, torturando por sentimentos tão contraditórios, acabou piorando. A febre aumentou. Então, os médicos disseram a rainha que a doença do príncipe era simplesmente amor.
Na hora, a rainha e o rei foram ao quarto do adorado doente.
– Meu filho! – disseram-lhe. – Seja bom conosco e nos diga o nome daquela que conquistou seu coração, porque juramos aceitar a sua escolha, mesmo que seja a mais humilde serva.
O príncipe, comovido com as palavras dos pais, respondeu-lhes:
– Meus queridos pais, eu não quero casar-me com alguém que lhes desagrade, e para provar o que digo declaro que só me casarei com a dona deste anel. Acho que a dona de um dedinho que nele caiba não pode ser nenhuma aldeã indigna de nós.
O rei e a rainha pegaram o anel, examinaram-no com atenção e concordaram com o filho. Em seguida, o rei beijou o filho e se retirou, fez um decreto em que se proclamava que a moça cujo dedo coubesse o anel seria a esposa do príncipe. Houve uma verdadeira peregrinação de moças em idade de casar ao palácio. Vieram primeiro, as princesas, que eram muitas; em seguida , as duquesas, as marquesas e as baronesas, mas em nenhum dos seus dedos coube o anel. Depois, vieram as mais belas moças da cidade, que não pertenciam à nobreza, e tampouco nos dedos coube o anel. O príncipe melhorara e ele próprio fazia a prova.
Por fim, chegou a vez das milhares moças de baixa condição, criadas, camareiras, e o mesmo aconteceu com elas. Então, o príncipe mandou vir também as cozinheiras e as guardadoras de gado, mas foi em vão.
– Agora só resta vir a tal Pele de Asno que me preparou o bolo – disse o príncipe – e todos riram, dizendo que uma criatura daquela tão suja não era digna sequer de pôr os pés no palácio.
– Ordeno que a tragam – declarou o príncipe – Não há porque venham todas menos ela.
Os cortesãos lhe obedeceram e foram buscá-la porém dando gargalhadas daquela excentricidade do príncipe.
Pele de Asno, que já amava o príncipe, sentiu o coração pular quando soube do tumulto que ocorria na Corte por causa de seu anel e, desconfiada de que também a viria buscar, arrumou-se o melhor que pôde e pôs o seu mais lindo vestido. Em seguida, envolveu-se na pele do asno e aguardou. Algum tempo depois, chegaram os mensageiros com a ordem de levá-la, e os tais mensageiros não conseguiram parar de rir daquele horrendo ser. “Chamaram-na ao palácio, ó imunda! Para casar-se com o filho do rei, Ah! Ah! Ah!”.
O príncipe ficou desapontado quando Pele de Asno entrou no seu quarto.
– É você mesma que ocupa aquele quartinho no fundo da granja?
– Sim, senhor príncipe – respondeu ela.
– Mostre-me a mão – disse-lhe o príncipe por desencargo de consciência, e suspirando de desânimo.
Então, o que se sucedeu foi qualquer coisa. Assim que recebeu a ordem de mostrar a mão, Pele de Asno pôs para fora da medonha pele que a cobria a mais delicada mão do mundo, rósea, em cujo dedo médio o anel coube como se tivesse sido feito especialmente para ele. De súbito, a pele de asno lhe caiu dos ombros e aos olhos de todos surgiu uma criatura de beleza exuberante. O príncipe pulou da cama e, ajoelhando aos seus pés, abraçou-a com ternura. Em seguida, o rei e a rainha fizeram o mesmo, perguntando-lhe se aceitava o príncipe por esposo. A princesa, toda confusa, já abria a boca para responder, quando o teto se abriu e a fada Lilás apareceu numa carruagem maravilhosa, tecida de pétalas de lilases, e contou a todos a história da princesa Tim-Tim por Tim-Tim.
A alegria do rei e da rainha foi imensa quando ficaram sabendo que Pele de Asno era uma princesa real e, portanto, digna de ser a esposa do herdeiro do trono, e de novo, a abraçaram e beijaram.
O príncipe estava tão impaciente para se casar que mal houve tempo para preparar uma festa à altura do faustoso acontecimento. O rei e a rainha, que tinham adoração pela nora, não paravam de mimá-la e de beijá-la. Porém, a moça estava triste e disse que não poderia casar-se sem o consentimento do pai. Assim sendo, ele foi o primeiro a receber o convite para as bodas, que, a conselho da fada Lilás, não mencionava o nome da noiva. Às núpcias, compareceram reis de todas as regiões: alguns foram de liteira, outros de cabriolé, e os de terras mais longínquas, montados em elefantes, em tigres e em águias. Porém, o mais poderoso e magnificente era o pai da princesa, que, para alegria geral, havia esquecido aquele amor impossível e descabido e se havia casado com uma bela rainha viúva, com a qual não teve filhos. A princesa assim que o viu, correu ao seu encontro, e ele logo a reconheceu e a beijou ternamente, antes que ela pudesse ajoelhar-se aos seus pés. O rei e a rainha lhe apresentaram o filho, de quem se tornou muito amigo. As bodas se deram com pompa e circunstâncias, mas os noivos nem perceberam isso, pois só tinham olhos um para o outro.
Então, o rei, pai do príncipe, aproveitou a ocasião para passar o trono ao adorado filho. Este não o queria, mas o rei o forçou, e, para comemorar tão majestoso acontecimento, decretou três meses de festas contínuas que ficaram célebres nos anais do reino; mas o amor dos dois duraria até hoje, de tal forma como eles se amavam.
No palácio real, havia abundância de tudo e muito bom gosto. Os ministros eram muito sagazes e habilidosos, os cortesãos, muito dedicados, e os empregados, muito leais. Na grande estrebaria, havia os mais soberbos cavalos jamais vistos e com os melhores arreios, embora todos estranhassem que o mais importante animal fosse um asno com orelhas compridíssimas. Mas não fora por um mero capricho que o rei lhe dera tamanha distinção. O asno era merecedor de todas as regalias e honras, pois, na verdade, se tratava de um asno com poderes mágicos. Todo dia, ao nascer do sol, a sua baia estava coberta de moedas de ouro, que o rei mandava colher.
Mas como a vida não é para sempre um mar de rosas, certo dia a rainha caiu de cama, com uma doença desconhecida que nenhum médico era capaz de curar. No palácio, baixou uma intensa tristeza. O rei foi a todos os templos do castelo e fez promessas, em que se comprometia a dar sua própria vida em troca da cura da amada rainha. Mas tudo foi em vão.
Certo dia, sentindo que ia morrer, a rainha chamou o marido e lhe disse, aos prantos:
– Meu fiel esposo e amigo quero fazer-lhe antes de ir-me um pedido: se de novo se casar…
Nesse ponto, o rei a interrompeu, apartando-lhe as mãos e desfazendo-se em lágrimas, como que para dizer-lhe que jamais sequer pensara nisso.
– Não, não, minha fiel esposa e amiga, em vez disso, peça-me que a siga na tumba!
– O reino – continuou a rainha com tranquila firmeza – precisa de sucessores e eu só lhe dei uma filha. Portanto terá que se casar de novo, e eu lhe peço que só se case se encontrar uma princesa mais bonita e mais bem-dotada do que eu. Se me jurar isso morrerei feliz e em paz.
Parece que a rainha tinha muito amor próprio, e que se forçou o marido a essa promessa, foi porque não cogitava que pudesse haver outra princesa que excedesse em beleza e dotes. Porém, o rei jurou e ela, alguns minutos depois, morreu.
O rei sofreu imensamente. Durante vários dias, só chorou e se lamentou. Mas, com o tempo, se foi conformando, e, certo dia, os seus ministros lhe mandaram uma representação, pedindo-lhe que se casasse de novo. Tal pedido o fez desfazer-se em lágrimas pelo pesar reavivado e respondeu que jurara à esposa que só voltaria a se casar quando aparecesse uma princesa mais bonita e mais bem-dotada do que a falecida o que era praticamente impossível. Os ministros disseram que a beleza era algo supérfluo, e que para o bem do reino bastava uma rainha virtuosa e fértil, que lhe desse muitos filhos homens e, assim, tranquilizasse o povo quanto a sucessão. Também disseram que a princesa real tinha todos os atributos para se tornar uma grande rainha, mas, por ser mulher, logo se casaria com um príncipe estrangeiro, o que poria em risco a coroa, já que o rei não tinha filhos que lhe sucedessem.
O rei ouviu tudo e meditou sobre aqueles argumentos racionais, prometendo que voltaria a se casar. E, de fato, procurou, entre as princesas em idade de casar uma que lhe fosse conveniente. Todos os dias, os ministros lhe traziam retratos de princesas dos reinos das cercanias – porém o rei respondia negativamente com a cabeça. Nenhuma chegava aos pés da sua amada falecida.
O tempo passava e, à medida que passava, a princesa real ficava cada vez mais linda, excedendo a própria mãe. O rei reparava naquilo, e como já não estava muito no seu juízo perfeito, começou a sentir pela filha um amor profundo e forte, que não se assemelhava ao amor paterno. Enfim, não conseguindo mais esconder os seus sentimentos, declarou que só se casaria com ela.
A jovem princesa, que era muito virtuosa, quase desfaleceu quando ouviu a declaração de rei seu pai. Lançou sê-lhe aos pés e suplicou eloquentemente a não cometer aquele crime hediondo.
O rei foi consultar um druida para ficar com a consciência tranquila, e o druida, que era muito ambicioso e só queria tornar-se um dos favoritos do rei, convenceu-o de que não havia mal algum naquele casamento e que, além de ser vantajoso para todos, era até mesmo um ato de crueldade. O rei o abraçou e retornou ao palácio mais decidido ainda, e mandou que a princesa se preparasse para as bodas.
A princesa, em desespero, só ocorreu uma idéia: ir consultar a fada Lilás, sua madrinha. Então, partiu naquela noite mesmo, numa espécie de carro puxado por um cordeiro que conhecia todos os caminhos. A fada gostava muito da princesa e logo que a viu chegar lhe disse que já sabia tudo.
– É claro, minha menina, que seria um grande erro casar-se com o seu pai. Porém, eu vejo um jeito de arranjar as coisas sem que haja um confronto. Concorde com as bodas, mas lhe exija como condição que ele lhe dê um vestido da cor do tempo. Nem com todas as riquezas que possui, nem com todo o seu poder, ele conseguirá semelhante vestido.
A princesa agradeceu à sua madrinha, retornou ao palácio e disse ao rei que se casaria com ele, contando que lhe desse um vestido com a cor do tempo. O rei ficou tão maravilhado com a resposta, que mandou vir os mais habilidosos costureiros do reino, e lhes ordenou que fizessem o vestido, sob pena de serem enforcados.
Mas isso não foi necessário, porque após dois dias os costureiros trouxeram o vestido, leve como as manhãs e azul como o céu. A princesa ficou desapontada e correu de novo ao encontro da madrinha:
– O que fazer agora? – Perguntou-lhe.
– Peça gora um vestido da cor da lua – responde-lhe a fada.
E a princesa real pediu ao rei o vestido da cor da lua, que foi encomendado de imediato. No dia seguinte, o vestido foi entregue e era tal e qual da cor da lua. A princesa se desesperou e de novo se lamentava quando a fada apareceu e disse:
-Se pedir um vestido da cor do sol, tenho certeza de que o rei ficará muito embaraçado, pois é impossível fazer um vestido da cor do sol – e, pelo menos, você ganhará tempo.
A princesa fez o que a fada lhe recomendou – pediu ao rei um vestido da cor do sol, que foi de pronto, encomendado. E para que os costureiros o pudessem fazer, o rei lhes deu todos os diamantes e rubis da sua própria coroa para enfeitar o vestido. Quando trouxeram, todos os habitantes do palácio tiveram que fechar os olhos, tamanho era o seu esplendor.
A moça se sentiu perdida, e sob o pretexto de que o vestido lhe havia feito mal aos olhos, retirou-se para seus aposentos, onde a guardava a boa fada.
-Minha menina, não se desespere! Nem tudo está perdido! – disse-lhe ela. – O rei está obcecado e nossos estratagemas falharam. Mas acho que se pedir a pele do asno que fornece todo o ouro que é sustento da riqueza dessa corte, ele negará. Vá pedir-lhe a pele do asno.
A jovem, alegre e cheia de esperanças, correu e foi pedir ao pai a pele do asno. O rei ficou espantado com aquele capricho, mas na hora ordenou que sacrificassem o asno, cuja pele foi dada à princesa.
A princesa subiu, correndo para seus aposentos e se desfez em lágrimas, mas sua madrinha conseguiu acalmá-la facilmente.
-Mas o que há menina? Pois fique sabendo que isso foi ótimo. Envolva-se na pele do asno e saia pelo mundo. Deus recompensa quem tudo sacrifica pela virtude. Vá. Tudo o que lhe pertence a acompanhará, eu lhe garanto. Fique com a minha varinha de condão. Sempre que a bater no chão, verá surgirem as coisas de que estiver precisando.
A princesa deu um abraço apertado na madrinha, suplicando-lhe que não a abandonasse jamais. Em seguida, envolveu-se na pele do asno, passou fuligem no rosto e saiu do palácio sem que ninguém a notasse.
O desaparecimento da princesa foi um verdadeiro escândalo. O rei, que já ordenara uma esplêndida festa para o dia de suas bodas, mergulhou no desespero. Mandou mais de mil mosqueteiros saírem à procura da filha. Mas tudo foi em vão. A varinha de condão tinha a fantástica propriedade de tornar a princesa invisível a todos seus perseguidores.
Assim que saiu do palácio, a princesa foi andando sem rumo, até muito longe, à procura de uma casa onde pudesse empregar-se. Todo mundo lhe dava esmolas, mas ninguém a recebia na sua casa. Aquele rosto cheio de fuligem e aquela pele de asno fazia as pessoas se sentirem nojo dela. Por fim, chegou ás cercanias de uma cidade onde havia granja. Naquele exato local, estavam a procura de uma empregada que executasse as tarefas mais grosseiras, como lavar a pocilga, guardar os gansos e outras coisas do tipo. Vendo aquela maltrapilha tão suja, a dona da granja se dispôs a empregá-la, coisa que a princesa aceitou de pronto, de tão cansada que estava.
A mísera princesa teve de ficar num canto da cozinha, com toda a criadagem a caçoar dela da maneira mais estúpida – tudo devido à pele de asno que ela usava. Enfim, acabou por se acostumar com aquilo, e caprichava tanto na execução das suas tarefas, que a dona da granja começou a vê-la com melhores olhos.
Certo dia em que sentara à beira de um tanque, resolveu mirar-se no espelho d’água e assustou-se com sua horrível aparência. Lavou-se e ficou clara como era – linda e branca como a lua. Algum tempo depois, teve que vestir de novo a medonha pele de asno a fim de voltar para casa.
No dia seguinte, não havia trabalho, porque era dia de festa, então a princesa tocou a varinha, e a sua frente surgiram os seus pertences, e ela se divertiu em pentear-se e enfeitar-se com os seus mais lindos ornamentos. O seu quarto era tão pequenininho que as caldas dos vestidos não se podiam desdobrar. Com justo mérito, a princesa se admirou no espelho e teve, dessa forma, um dia feliz. Depois desse dia, resolveu que em todas as horas vagas poria os seus lindos vestidos e se enfeitaria – mas sempre às escondidas, dentro das quatro paredes do seu quartinho. Por vezes, ficava tão encantadoramente linda que até suspirava por não haver ninguém que a visse.
Num dia de folga , em que Pele de Asno (chamavam-na por esse nome) pusera o seu vestido da cor do sol, ocorreu de ali parar o filho do rei, que fora à caça. Era um belo príncipe, o poso idolatrava e os seus pais o adoravam. A dona da granja mostrou-lhe tudo, as aves, as plantações, e como o príncipe era muito curioso, percorreu a propriedade toda, examinando tudo. Mas quando passava por um corredor, encontrou uma porta trancada e resolveu espiar pelo buraco da fechadura: vislumbrou, lá dentro, uma beleza que o deixou fascinado. Era Pele de Asno com seu vestido da cor do Sol.
Muito intrigado, o príncipe saiu dali e foi perguntar quem ocupara aquele quarto escuro. Responderam-lhe que era uma pastora imunda chamada Pele de Asno, pois sempre vestia uma pele desse animal; disseram também que era tão suja que ninguém tinha vontade de aproximar-se dela, nem de falar-lhe, e que só por caridade a tinham empregado como pastora de carneiros e gansos.
O príncipe logo percebeu que era inútil inquirir aquelas pessoas tolas e voltou para a corte com o coração palpitando de transtorno. Não conseguia tirar da cabeça a fascinante deusa vislumbrada por alguns segundos pelo buraco da fechadura. Arrependeu-se amargamente de não ter arrombado a porta. E tamanha foi a sua excitação que ficou com uma febre altíssima. A rainha se desesperou com o estado do seu filho único e prometeu milhões de recompensa quem pudesse curá-lo.
Todos os melhores médicos do reino acudiram e, depois de vários exames, concluíram que a doença do príncipe provinha de uma inquietude moral. Assim que a rainha ficou sabendo disso foi perguntar ao filho o que realmente se passava no seu coração. Disse-lhe que o que quer que fosse ela faria tudo por amor a ele; que se queria a coroa, com certeza o seu pai daria sem problema algum; que se queria tomar por esposa alguma princesa, a tomaria, mesmo que fosse necessário declarar uma guerra. Mas que, pelo amor de Deus, não continuasse daquele jeito e lhe confessasse tudo, senão também ela morreria.
-Minha querida mamãe – respondeu o príncipe com voz agonizante – não sou um filho desnaturado que quer subir ao trono quando seu pai ainda está vivo. Pelo contrário: gostaria muito que ele vivesse por muitos anos mais.
-Eu sei meu filhinho, mas sua vida é o que temos de mais precioso e queremos saber qual é o motivo do seu desassossego, que tudo faremos para salvar a vida, pois salvando a sua vida estaremos salvando também a nossa.
-Tudo bem mamãe, vou contar-lhe a verdade. O que quero é que Pele de Asno me faça um bolo para saciar a minha vontade.
A rainha ficou estupefata ao ouvir aquele pedido tão estranho, ainda mais com a menção de uma pessoa toda desconhecida e de nome tão feio.
-Meu filho, quem é Pele de Asno?
Um dos palacianos que já estivaram na granja respondeu:
-Majestade, Pele de Asno é uma pastora imunda, encardida, que guarda os carneiros e gansos numa granja de propriedade real.
-Pouco importa! – disse a rainha. – Talvez o meu filho numa das suas caçadas, tenha comido um bolo feito por ela e agora está com desejo doentio. Mandem Pele de Asno preparar o mais rápido possível, o bolo.
Cumpre dizer que, no instante em que o príncipe olhou pelo buraco da fechadura, quando visitou a granja, a princesa o percebeu, e depois, pela janelinha, pode vê-lo quando ele se afastava – e admirou o porte e a beleza viril do príncipe. Alguns dizem até que suspirou – e que desse dia em diante sempre suspirava quando se lembrava daquela cena. O que quer que seja, quando Pele de Asno recebeu a ordem de preparar o bolo, ficou agitadíssima e foi correndo fechar no seu quartinho para pôr a mão na massa. Para tanto, lavou-se, penteou-se pôs seu vestido mais bonito e começou a amassar a mais branca e pura farinha com a manteiga e os ovos mais frescos e amarelinhos. Num dado momento, não se sabe se por obra do acaso ou se de propósito, deixou cair na massa um anel que tinha no dedo. Uma vez pronto o bolo, escondeu-se de novo sob a medonha e repugnante pele, e abriu a porta para entregar aos mensageiros o que lhe fora encomendado, e, tímida, lhes perguntou como passava o príncipe. Os mensageiros, muito soberbos, nem lhe responderam. Pegaram o bolo e se foram a galope para o palácio.
O príncipe recebeu ávido, o bolo, e o comeu com tamanha voracidade que os médicos ficaram estupefatos, não achando aquilo nem um pouco natural. Alguns segundos depois começou a tossir desesperadamente, como se algo o asfixiasse. Era o anel. Tirou-o da boca e viu que se tratava de uma jóia rara e linda, que só poderia caber num dedinho de extrema delicadeza.
O príncipe o beijou inúmeras vezes e pôs à sua cabeceira, para de novo contemplá-lo e beijá-lo sempre que ficava sozinho.
Agora o que atormentava era o desejo de conhecer a dona do anel, porém recava contar o que vira pelo buraco da fechadura, pois tinha a certeza de que todos zombariam dele. E, torturando por sentimentos tão contraditórios, acabou piorando. A febre aumentou. Então, os médicos disseram a rainha que a doença do príncipe era simplesmente amor.
Na hora, a rainha e o rei foram ao quarto do adorado doente.
– Meu filho! – disseram-lhe. – Seja bom conosco e nos diga o nome daquela que conquistou seu coração, porque juramos aceitar a sua escolha, mesmo que seja a mais humilde serva.
O príncipe, comovido com as palavras dos pais, respondeu-lhes:
– Meus queridos pais, eu não quero casar-me com alguém que lhes desagrade, e para provar o que digo declaro que só me casarei com a dona deste anel. Acho que a dona de um dedinho que nele caiba não pode ser nenhuma aldeã indigna de nós.
O rei e a rainha pegaram o anel, examinaram-no com atenção e concordaram com o filho. Em seguida, o rei beijou o filho e se retirou, fez um decreto em que se proclamava que a moça cujo dedo coubesse o anel seria a esposa do príncipe. Houve uma verdadeira peregrinação de moças em idade de casar ao palácio. Vieram primeiro, as princesas, que eram muitas; em seguida , as duquesas, as marquesas e as baronesas, mas em nenhum dos seus dedos coube o anel. Depois, vieram as mais belas moças da cidade, que não pertenciam à nobreza, e tampouco nos dedos coube o anel. O príncipe melhorara e ele próprio fazia a prova.
Por fim, chegou a vez das milhares moças de baixa condição, criadas, camareiras, e o mesmo aconteceu com elas. Então, o príncipe mandou vir também as cozinheiras e as guardadoras de gado, mas foi em vão.
– Agora só resta vir a tal Pele de Asno que me preparou o bolo – disse o príncipe – e todos riram, dizendo que uma criatura daquela tão suja não era digna sequer de pôr os pés no palácio.
– Ordeno que a tragam – declarou o príncipe – Não há porque venham todas menos ela.
Os cortesãos lhe obedeceram e foram buscá-la porém dando gargalhadas daquela excentricidade do príncipe.
Pele de Asno, que já amava o príncipe, sentiu o coração pular quando soube do tumulto que ocorria na Corte por causa de seu anel e, desconfiada de que também a viria buscar, arrumou-se o melhor que pôde e pôs o seu mais lindo vestido. Em seguida, envolveu-se na pele do asno e aguardou. Algum tempo depois, chegaram os mensageiros com a ordem de levá-la, e os tais mensageiros não conseguiram parar de rir daquele horrendo ser. “Chamaram-na ao palácio, ó imunda! Para casar-se com o filho do rei, Ah! Ah! Ah!”.
O príncipe ficou desapontado quando Pele de Asno entrou no seu quarto.
– É você mesma que ocupa aquele quartinho no fundo da granja?
– Sim, senhor príncipe – respondeu ela.
– Mostre-me a mão – disse-lhe o príncipe por desencargo de consciência, e suspirando de desânimo.
Então, o que se sucedeu foi qualquer coisa. Assim que recebeu a ordem de mostrar a mão, Pele de Asno pôs para fora da medonha pele que a cobria a mais delicada mão do mundo, rósea, em cujo dedo médio o anel coube como se tivesse sido feito especialmente para ele. De súbito, a pele de asno lhe caiu dos ombros e aos olhos de todos surgiu uma criatura de beleza exuberante. O príncipe pulou da cama e, ajoelhando aos seus pés, abraçou-a com ternura. Em seguida, o rei e a rainha fizeram o mesmo, perguntando-lhe se aceitava o príncipe por esposo. A princesa, toda confusa, já abria a boca para responder, quando o teto se abriu e a fada Lilás apareceu numa carruagem maravilhosa, tecida de pétalas de lilases, e contou a todos a história da princesa Tim-Tim por Tim-Tim.
A alegria do rei e da rainha foi imensa quando ficaram sabendo que Pele de Asno era uma princesa real e, portanto, digna de ser a esposa do herdeiro do trono, e de novo, a abraçaram e beijaram.
O príncipe estava tão impaciente para se casar que mal houve tempo para preparar uma festa à altura do faustoso acontecimento. O rei e a rainha, que tinham adoração pela nora, não paravam de mimá-la e de beijá-la. Porém, a moça estava triste e disse que não poderia casar-se sem o consentimento do pai. Assim sendo, ele foi o primeiro a receber o convite para as bodas, que, a conselho da fada Lilás, não mencionava o nome da noiva. Às núpcias, compareceram reis de todas as regiões: alguns foram de liteira, outros de cabriolé, e os de terras mais longínquas, montados em elefantes, em tigres e em águias. Porém, o mais poderoso e magnificente era o pai da princesa, que, para alegria geral, havia esquecido aquele amor impossível e descabido e se havia casado com uma bela rainha viúva, com a qual não teve filhos. A princesa assim que o viu, correu ao seu encontro, e ele logo a reconheceu e a beijou ternamente, antes que ela pudesse ajoelhar-se aos seus pés. O rei e a rainha lhe apresentaram o filho, de quem se tornou muito amigo. As bodas se deram com pompa e circunstâncias, mas os noivos nem perceberam isso, pois só tinham olhos um para o outro.
Então, o rei, pai do príncipe, aproveitou a ocasião para passar o trono ao adorado filho. Este não o queria, mas o rei o forçou, e, para comemorar tão majestoso acontecimento, decretou três meses de festas contínuas que ficaram célebres nos anais do reino; mas o amor dos dois duraria até hoje, de tal forma como eles se amavam.
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Médico na Escola
Dr José Carlos Machado
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