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sexta-feira, 11 de novembro de 2022

MEU FILHO É DIFERENTE - artigo








MEU FILHO É DIFERENTE.

Nós não vemos o que vemos, nós vemos o que somos. Só veem as belezas do mundo, aqueles que têm belezas dentro de si.

Rubem Alves.

Os olhos não veriam o sol senão fossem parecidos com o sol e a alma não verá a beleza se ela não for bela.

Plotino

 

Muitos pais se sentem discriminados quando matriculam seus filhos em escolas ditas comuns, não se sentem acolhidos. Sabem que são crianças especiais. Algumas portadoras de síndromes conhecidas e até com diagnósticos específicos. Muitas são rotuladas e assim seus destinos, talvez frágeis, se tornam inviáveis, porque os sintomas chegam antes delas e a criança passa a ser um disléxico, um impulsivo, hiperativo, portador de TDAH, autista, alguém portador de Asperger, síndrome de Down ou de alguma anomalia cromossômica desconhecida, enfim são crianças diferentes que precisam ter o seu lugar no mundo, mas para isso precisamos incluí-las e suas famílias também.

Algumas pedagogias possuem um arsenal bastante satisfatório para auxiliar aquelas que não se adaptaram em metodologias mais rígidas. Quando respeitamos o processo da criança, suas limitações e também não esquecendo de valorizar suas potencialidades, apesar dos diagnósticos e de suas consequências, ajudamos a criança a aprender coisas novas, vencer barreiras, superar limites, educando-as para a vida. Mas é importante que se diga que só isso não basta. Outros profissionais, quando trabalham em conjunto, podem objetivar o mesmo fim, auxiliando muito no sucesso pedagógico terapêutico dessa criança.

Quando uma criança assim entra na escola, toda a comunidade escolar e principalmente seus colegas de sala de aula serão os principais beneficiários e vou tentar explicar o porquê disso. O convívio com crianças que necessitam de cuidados especiais (e aí se incluem muitas variações), possibilita que aqueles que não tem o mesmo problema possam enxergar que alguém muito próximo não teve a mesma sorte, desse modo, através de uma compaixão ativa (realista e esperançosa) e não simplesmente passiva (piedosa e piegas), esse colega e as outras pessoas que passarão a conviver com ela, possam entende-la e ajudá-la a vencer seus desafios, mesmo com suas limitações, mas preservando sua autonomia e torcendo por suas conquistas.   

A normatização e o enquadramento a que somos submetidos cada vez mais nos escraviza e nos tornam mais robotizados. Portanto, em uma sociedade que os valores estéticos predominam, os feios, os esquisitos e os diferentes sofrem discriminação. O que dizer então dos portadores de alguma deficiência mais marcante; serão certamente ignorados ou ainda desprezados.

A princípio as crianças não tem preconceito, às vezes curiosas se aproximam e tentam se relacionar, algumas vezes estranham aqueles colegas diferentes, mas os adultos devem ajudar a que esse acolhimento seja verdadeiro e humano. Se a criança discrimina e essa atitude não for questionada irá entender que pessoas diferentes são inferiores e já passou da hora de assumirmos uma posição de acolhimento com as diversidades.

Essa tarefa nasce dentro de casa, da educação doméstica que a criança recebe dos pais. Discursos sobre igualdade e fraternidade devem ser exercidos diariamente e através da autoeducação conseguimos dar esse passo, primeiro em nós mesmos e depois ensinando e orientando aos nossos filhos, alunos e pacientes (ampliando o leque de atuação dos adultos que cuidam e conduzem crianças), que todos, absolutamente todos, têm o seu lugar nesse mundo. Destinos frágeis podem também serem destinos dignos. Essa é a verdadeira inclusão.

Crianças também podem ser cruéis e menosprezar e fazer “bullying” com seus colegas. Não devemos permitir que isso aconteça, na esfera familiar e na comunidade escolar sadia esse tipo de procedimento não “ganha terreno” porque simplesmente é inadmissível depreciar alguém. Adultos atentos interferem e ensinam às crianças que todos tem os mesmos direitos.

Por outro lado, trabalho também com pais que não aceitam que seus filhos tenham um comportamento diferente comparado com outras crianças. Talvez intimamente até pensem nessa eventualidade, mas preferem negar e isso não ajuda muito. Precisam vencer inicialmente a falha genética, ou seja, assumir que seu filho tem alguma coisa errada. Se despirem de seu narcisismo e considerar que a criança tem algum problema. Não é uma tarefa fácil, mas é importante que aconteça o quanto antes, isso, aliás, define a condução da criança daí em diante.

Conheço famílias com crianças com determinadas especificidades cujos pais assumiram com tal zelo e confiança a missão de ingressá-las no mundo que, mesmo com suas limitações, a criança consegue alcançar muito de seus objetivos, justamente porque foram aceitas afetiva e espiritualmente do jeito que são, mas não foram poupadas ou piedosamente tratadas.

Por outro lado, existe o oposto disso, quando as crianças revelam suas diferenças expõem seus pais, que se envergonham delas e mascaram isso ou superficializam suas necessidades e cuidados, o que só aumenta a dificuldade de convívio com outras crianças e o mundo se transforma em um lugar em que ela não terá espaço, dependerá sempre dos seus pais, porque não foi ensinado autonomia e como poderá viver independente deles (leia mais sobre isso no capítulo autonomia e independência: imprescindíveis!).

 

Tive muitas oportunidades de observar vários casos assim no meu trabalho dentro das escolas, um deles me chamou muito minha atenção, quando uma menina de oito anos se matriculou na escola. Era cega e apresentava uma deformidade em uma das mãos (discreta atrofia muscular adquirida congenitamente, assim como a cegueira), sem problemas cognitivos, falava baixo, simpática, lembro de seu sorriso cativante e de seu empenho durante as aulas. Seus colegas a receberam bem e a princípio muitos se mostraram grandes cuidadores dessa menina, acompanhando-a, zelando por ela. Notava que a protegiam, temendo que algo pudesse acontecer, achava que, no fundo, tinham mesmo pena da menina cega. Sua mãe permanecia o tempo todo na escola, observava à distância o comportamento da filha única e sempre pronta a intervir caso a criança solicitasse. Observava essa “ronda materna em torno da cria” como algo aflitivo e certamente ansioso. Constantemente perguntava à professora: - Se tudo ia bem ou se precisava de alguma coisa? Com o passar do tempo seu grupo de protetores foi diminuindo e as crianças começaram a trata-la como uma criança igual a elas. Não mais como uma menina cega. Deixaram de ter pena dela, foi e até, vez por outra, escondiam a sua bengala, não por perversidade, mas por brincadeira, geralmente alguém a defendia e a entregava de volta, ela mesma se divertia e desse modo essa menina foi sendo incluída na classe e na escola. Restava ainda outra “bengala”: a mãe! Essa continuava atenta e vigilante, parecia confiar na escola, na professora e nos colegas da filha, mas temia que caso ela precisasse de algo não estaria ali presente pronta para atende-la. Fui então falar com ela. Perguntei-lhe sobre sua escolha pela escola, se preenchia suas expectativas, se notava que a filha gostava ou não. E as respostas eram as mais animadoras. Sim ela e o marido estavam muito satisfeitos com a escola. Sim, os colegas, às vezes eram “arteiros”, mas tratavam a filha com muito carinho e dizia que nunca antes observara a filha tão desenvolta e feliz. Então perguntei-lhe: - Por que então você não a deixa aqui e vai embora e retorne somente na hora da saída? Me respondeu: - E se ela precisar de alguma coisa e eu não estiver por perto? – Então [lhe falei] - Ela vai ter que se arranjar de outra maneira, vai pedir, vai ter de falar mais alto para ser ouvida, enfim vai ter de se virar! Às vezes, do lado de fora fica mais fácil observar certas coisas que quem está dentro não consegue ou não se permite ver, era esse o caso. Lógico que não foi somente dessa vez que tivemos essa conversa, mas aos poucos e, insistentemente, eu trazia a ideia de promover a autonomia dessa criança diante das tarefas diárias, para superar e interagir em seu meio. Um dia lhe perguntei: - Como sua filha vai sobreviver nesse mundo caso, hipoteticamente, você ou o pai dela não estejam por perto? É preciso que nos tornemos desnecessários para os nossos filhos, esse é o grande desafio. Uma tarefa difícil para os pais, permitir que seus filhos cresçam e conquistem seu lugar ao mundo, inicialmente com nossa ajuda, depois com supervisão, para mais tarde, com nossa benção e confiança, deixá-los voar. Para terminar essa história a criança ficou na escola por mais dois anos até que seus pais mudaram de cidade e ela teve de se despedir dos professores e dos colegas. Deixou muita saudade aquele sorriso e soube que na casa nova, em seu aniversário de dez anos, muitos amigos da antiga escola foram visita-la. Depois de nossa terceira conversa, a mãe resolveu experimentar ir para casa mais cedo.

Alguns ajustes serão necessários e a própria dinâmica das relações vai ajudar a criança a se organizar no meio em que vive, outras tantas vezes precisará da ajuda de seus condutores, orientando, ensinando e criando métodos, rotinas e ritmos que, principalmente para essas crianças, serão muito eficazes e funcionais.

Interessante pontuar que diante de algumas situações não de natureza sindrômica, mas que apresentam desajustes na esfera comportamental, pais se justificam referindo que eles próprios quando crianças apresentavam comportamento semelhante e não se incomodam com as queixas de professores e outras pessoas que convivem com seu filho. Convém lembrar que, embora essas crianças acabem se adaptando em circunstâncias nem sempre acolhedoras, isso gera angústia e intimida a criança em seu desenvolvimento. Um auxilio efetivo seria poder contar justamente com aqueles que já experimentaram casos semelhantes, como os pais e familiares que podem incentivar a criança procurando ajuda e meios para facilitar esses desajustes.

Um procedimento comum nas escolas quando os professores chamam os pais para conversar sobre o desempenho de seus filhos, muitos justificam esse comportamento dizendo que assim como seu filho eram, por exemplo, distraídos e dispersos e com o passar dos anos foram melhorando e hoje se consideram normais. Quando tenho oportunidade de falar com eles, argumento que talvez não valha a pena adiar situações semelhantes, porque a criança poderá não tenha a mesma sorte que seus pais tiveram e se detectamos algo assim, não ajuda em nada simplesmente negar e passar por cima, muitas dessas desatenções acabam gerando angústia na própria criança que também pode ser alvo de piada e perseguição entre seus colegas, então porque não a ajudar? Superficializando demais essas queixas, as quais até reconhecemos como dificuldades, deixamos de prestar uma ajuda valiosa para a criança superar esses entraves.


                                                         José Carlos Neves Machado - médico escolar


Karl König (1902 – 1966) foi um pediatra austríaco que fundou o Movimento Camphill, um movimento internacional de comunidades terapêuticas voltado para pessoas com necessidades especiais ou deficiências, dizia a respeito de crianças com necessidades especiais: “essas crianças são os arautos que, silenciosa e reverentemente, colocam sua existência diante de nós, para nos fazer ver o que quase esquecemos. Elas nos exortam a perceber que o ser humano não é apenas o servidor dos poderes da civilização contemporânea, mas que ele pode encontrar seu verdadeiro valor somente em si mesmo. Elas nos mostram que, apesar de serem incapazes de se adequar às exigências de emprego, aos testes industriais ou aos padrões do mundo financeiro, são ainda assim, seres humanos repletos de riqueza interior. Em cada uma dessas crianças vive um ser espiritual, assim como em todas as outras. Elas são feitas da mesma substância espiritual que todos os seres humanos e elas pleiteiam seus direitos cada vez mais com maior ênfase. Elas querem que saibamos que somos irmãos e irmãs diante de Deus. Alguns pais percebem este chamado e lutam pelos direitos de sus filhos; outros sucumbem e se ausentam com autopiedade e preguiça. O que estas crianças querem que voltemos a compreender é que elas também foram criadas à semelhança de Deus e enviadas ao mundo para cumprir suas tarefas e destinos; talvez tarefas silenciosas e destinos frágeis, mas, mesmo assim, destinos reais” (*)

 

(*) The Handicapped Child, Letters do Parents. – Karl König - East Grinstead – 1954, pp.3-5) [tradução Mariangela Motta Schleyer], in Revista Navegantes – número 1 – ano 1 – Associação Travessia – São Paulo: Editora João de Barro, 2004. 










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