MEU
FILHO É DIFERENTE.
Nós não vemos o que vemos, nós vemos o que
somos. Só veem as belezas do mundo, aqueles que têm belezas dentro de si.
Rubem Alves.
Os olhos não veriam o sol senão fossem
parecidos com o sol e a alma não verá a beleza se ela não for bela.
Plotino
Muitos pais se sentem discriminados quando
matriculam seus filhos em escolas ditas comuns, não se sentem acolhidos. Sabem
que são crianças especiais. Algumas portadoras de síndromes conhecidas e até
com diagnósticos específicos. Muitas são rotuladas e assim seus destinos, talvez
frágeis, se tornam inviáveis, porque os sintomas chegam antes delas e a criança
passa a ser um disléxico, um impulsivo, hiperativo, portador de TDAH, autista,
alguém portador de Asperger, síndrome de Down ou de alguma anomalia
cromossômica desconhecida, enfim são crianças diferentes que precisam ter o seu
lugar no mundo, mas para isso precisamos incluí-las e suas famílias também.
Algumas pedagogias possuem um arsenal bastante
satisfatório para auxiliar aquelas que não se adaptaram em metodologias mais
rígidas. Quando respeitamos o processo da criança, suas limitações e também não
esquecendo de valorizar suas potencialidades, apesar dos diagnósticos e de suas
consequências, ajudamos a criança a aprender coisas novas, vencer barreiras, superar
limites, educando-as para a vida. Mas é importante que se diga que só isso não
basta. Outros profissionais, quando trabalham em conjunto, podem objetivar o
mesmo fim, auxiliando muito no sucesso pedagógico terapêutico dessa criança.
Quando uma criança assim entra na escola, toda
a comunidade escolar e principalmente seus colegas de sala de aula serão os
principais beneficiários e vou tentar explicar o porquê disso. O convívio com
crianças que necessitam de cuidados especiais (e aí se incluem muitas variações),
possibilita que aqueles que não tem o mesmo problema possam enxergar que alguém
muito próximo não teve a mesma sorte, desse modo, através de uma compaixão
ativa (realista e esperançosa) e não simplesmente passiva (piedosa e piegas),
esse colega e as outras pessoas que passarão a conviver com ela, possam
entende-la e ajudá-la a vencer seus desafios, mesmo com suas limitações, mas
preservando sua autonomia e torcendo por suas conquistas.
A normatização e o enquadramento a que somos
submetidos cada vez mais nos escraviza e nos tornam mais robotizados. Portanto,
em uma sociedade que os valores estéticos predominam, os feios, os esquisitos e
os diferentes sofrem discriminação. O que dizer então dos portadores de alguma
deficiência mais marcante; serão certamente ignorados ou ainda desprezados.
A princípio as crianças não tem preconceito,
às vezes curiosas se aproximam e tentam se relacionar, algumas vezes estranham
aqueles colegas diferentes, mas os adultos devem ajudar a que esse acolhimento
seja verdadeiro e humano. Se a criança discrimina e essa atitude não for
questionada irá entender que pessoas diferentes são inferiores e já passou da
hora de assumirmos uma posição de acolhimento com as diversidades.
Essa tarefa nasce dentro de casa, da educação
doméstica que a criança recebe dos pais. Discursos sobre igualdade e
fraternidade devem ser exercidos diariamente e através da autoeducação
conseguimos dar esse passo, primeiro em nós mesmos e depois ensinando e
orientando aos nossos filhos, alunos e pacientes (ampliando o leque de atuação
dos adultos que cuidam e conduzem crianças), que todos, absolutamente todos,
têm o seu lugar nesse mundo. Destinos frágeis podem também serem destinos
dignos. Essa é a verdadeira inclusão.
Crianças também podem ser cruéis e menosprezar
e fazer “bullying” com seus colegas. Não devemos permitir que isso
aconteça, na esfera familiar e na comunidade escolar sadia esse tipo de
procedimento não “ganha terreno” porque simplesmente é inadmissível depreciar
alguém. Adultos atentos interferem e ensinam às crianças que todos tem os
mesmos direitos.
Por outro lado, trabalho também com pais que
não aceitam que seus filhos tenham um comportamento diferente comparado com
outras crianças. Talvez intimamente até pensem nessa eventualidade, mas
preferem negar e isso não ajuda muito. Precisam vencer inicialmente a falha
genética, ou seja, assumir que seu filho tem alguma coisa errada. Se despirem
de seu narcisismo e considerar que a criança tem algum problema. Não é uma
tarefa fácil, mas é importante que aconteça o quanto antes, isso, aliás, define
a condução da criança daí em diante.
Conheço famílias com crianças com determinadas
especificidades cujos pais assumiram com tal zelo e confiança a missão de
ingressá-las no mundo que, mesmo com suas limitações, a criança consegue
alcançar muito de seus objetivos, justamente porque foram aceitas afetiva e
espiritualmente do jeito que são, mas não foram poupadas ou piedosamente
tratadas.
Por outro lado, existe o oposto disso, quando
as crianças revelam suas diferenças expõem seus pais, que se envergonham delas
e mascaram isso ou superficializam suas necessidades e cuidados, o que só
aumenta a dificuldade de convívio com outras crianças e o mundo se transforma
em um lugar em que ela não terá espaço, dependerá sempre dos seus pais, porque
não foi ensinado autonomia e como poderá viver independente deles (leia mais
sobre isso no capítulo autonomia e independência: imprescindíveis!).
Tive muitas oportunidades de observar vários
casos assim no meu trabalho dentro das escolas, um deles me chamou muito minha
atenção, quando uma menina de oito anos se matriculou na escola. Era cega e
apresentava uma deformidade em uma das mãos (discreta atrofia muscular
adquirida congenitamente, assim como a cegueira), sem problemas cognitivos,
falava baixo, simpática, lembro de seu sorriso cativante e de seu empenho
durante as aulas. Seus colegas a receberam bem e a princípio muitos se
mostraram grandes cuidadores dessa menina, acompanhando-a, zelando por ela.
Notava que a protegiam, temendo que algo pudesse acontecer, achava que, no
fundo, tinham mesmo pena da menina cega. Sua mãe permanecia o tempo todo na
escola, observava à distância o comportamento da filha única e sempre pronta a
intervir caso a criança solicitasse. Observava essa “ronda materna em torno
da cria” como algo aflitivo e certamente ansioso. Constantemente perguntava
à professora: - Se tudo ia bem ou se precisava de alguma coisa? Com o passar do
tempo seu grupo de protetores foi diminuindo e as crianças começaram a trata-la
como uma criança igual a elas. Não mais como uma menina cega. Deixaram de ter
pena dela, foi e até, vez por outra, escondiam a sua bengala, não por
perversidade, mas por brincadeira, geralmente alguém a defendia e a entregava
de volta, ela mesma se divertia e desse modo essa menina foi sendo incluída na
classe e na escola. Restava ainda outra “bengala”: a mãe! Essa continuava
atenta e vigilante, parecia confiar na escola, na professora e nos colegas da
filha, mas temia que caso ela precisasse de algo não estaria ali presente
pronta para atende-la. Fui então falar com ela. Perguntei-lhe sobre sua escolha
pela escola, se preenchia suas expectativas, se notava que a filha gostava ou
não. E as respostas eram as mais animadoras. Sim ela e o marido estavam muito
satisfeitos com a escola. Sim, os colegas, às vezes eram “arteiros”, mas
tratavam a filha com muito carinho e dizia que nunca antes observara a filha
tão desenvolta e feliz. Então perguntei-lhe: - Por que então você não a deixa
aqui e vai embora e retorne somente na hora da saída? Me respondeu: - E se ela
precisar de alguma coisa e eu não estiver por perto? – Então [lhe falei] - Ela
vai ter que se arranjar de outra maneira, vai pedir, vai ter de falar mais alto
para ser ouvida, enfim vai ter de se virar! Às vezes, do lado de fora fica mais
fácil observar certas coisas que quem está dentro não consegue ou não se
permite ver, era esse o caso. Lógico que não foi somente dessa vez que tivemos
essa conversa, mas aos poucos e, insistentemente, eu trazia a ideia de promover
a autonomia dessa criança diante das tarefas diárias, para superar e interagir
em seu meio. Um dia lhe perguntei: - Como sua filha vai sobreviver nesse mundo
caso, hipoteticamente, você ou o pai dela não estejam por perto? É preciso que
nos tornemos desnecessários para os nossos filhos, esse é o grande desafio. Uma
tarefa difícil para os pais, permitir que seus filhos cresçam e conquistem seu
lugar ao mundo, inicialmente com nossa ajuda, depois com supervisão, para mais
tarde, com nossa benção e confiança, deixá-los voar. Para terminar essa
história a criança ficou na escola por mais dois anos até que seus pais mudaram
de cidade e ela teve de se despedir dos professores e dos colegas. Deixou muita
saudade aquele sorriso e soube que na casa nova, em seu aniversário de dez anos,
muitos amigos da antiga escola foram visita-la. Depois de nossa terceira
conversa, a mãe resolveu experimentar ir para casa mais cedo.
Alguns ajustes serão necessários e a própria
dinâmica das relações vai ajudar a criança a se organizar no meio em que vive,
outras tantas vezes precisará da ajuda de seus condutores, orientando,
ensinando e criando métodos, rotinas e ritmos que, principalmente para essas
crianças, serão muito eficazes e funcionais.
Interessante pontuar que diante de algumas
situações não de natureza sindrômica, mas que apresentam desajustes na esfera
comportamental, pais se justificam referindo que eles próprios quando crianças
apresentavam comportamento semelhante e não se incomodam com as queixas de
professores e outras pessoas que convivem com seu filho. Convém lembrar que,
embora essas crianças acabem se adaptando em circunstâncias nem sempre
acolhedoras, isso gera angústia e intimida a criança em seu desenvolvimento. Um
auxilio efetivo seria poder contar justamente com aqueles que já experimentaram
casos semelhantes, como os pais e familiares que podem incentivar a criança
procurando ajuda e meios para facilitar esses desajustes.
Um procedimento comum nas escolas quando os
professores chamam os pais para conversar sobre o desempenho de seus filhos,
muitos justificam esse comportamento dizendo que assim como seu filho eram, por
exemplo, distraídos e dispersos e com o passar dos anos foram melhorando e hoje
se consideram normais. Quando tenho oportunidade de falar com eles, argumento
que talvez não valha a pena adiar situações semelhantes, porque a criança
poderá não tenha a mesma sorte que seus pais tiveram e se detectamos algo
assim, não ajuda em nada simplesmente negar e passar por cima, muitas dessas
desatenções acabam gerando angústia na própria criança que também pode ser alvo
de piada e perseguição entre seus colegas, então porque não a ajudar?
Superficializando demais essas queixas, as quais até reconhecemos como
dificuldades, deixamos de prestar uma ajuda valiosa para a criança superar
esses entraves.
José Carlos Neves Machado - médico escolar
Karl König (1902 – 1966) foi um pediatra austríaco que fundou o Movimento Camphill, um movimento internacional de comunidades terapêuticas voltado para pessoas com necessidades especiais ou deficiências, dizia a respeito de crianças com necessidades especiais: “essas crianças são os arautos que, silenciosa e reverentemente, colocam sua existência diante de nós, para nos fazer ver o que quase esquecemos. Elas nos exortam a perceber que o ser humano não é apenas o servidor dos poderes da civilização contemporânea, mas que ele pode encontrar seu verdadeiro valor somente em si mesmo. Elas nos mostram que, apesar de serem incapazes de se adequar às exigências de emprego, aos testes industriais ou aos padrões do mundo financeiro, são ainda assim, seres humanos repletos de riqueza interior. Em cada uma dessas crianças vive um ser espiritual, assim como em todas as outras. Elas são feitas da mesma substância espiritual que todos os seres humanos e elas pleiteiam seus direitos cada vez mais com maior ênfase. Elas querem que saibamos que somos irmãos e irmãs diante de Deus. Alguns pais percebem este chamado e lutam pelos direitos de sus filhos; outros sucumbem e se ausentam com autopiedade e preguiça. O que estas crianças querem que voltemos a compreender é que elas também foram criadas à semelhança de Deus e enviadas ao mundo para cumprir suas tarefas e destinos; talvez tarefas silenciosas e destinos frágeis, mas, mesmo assim, destinos reais” (*)
(*) The
Handicapped Child, Letters do Parents. – Karl König - East Grinstead – 1954,
pp.3-5) [tradução Mariangela Motta Schleyer], in Revista Navegantes – número 1
– ano 1 – Associação Travessia – São Paulo: Editora João de Barro, 2004.
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Médico na Escola
Dr José Carlos Machado
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