TRABALHAR FORA DE CASA, AS CRIANÇAS FICAM COM QUEM?
Quando o importante fica sufocado pelo urgente, o
tempo para consertar tal distúrbio é muito maior do que aquele que se usaria
antes dele existir.
Mário Sergio Cortella.
Talvez
em um mundo ideal a criança pudesse usufruir da presença de sua mãe o tempo
todo até completar seis, sete anos. Então ela ficaria em casa e a partir daí iria
para a escola para aprender a ler e escrever. Mas a realidade não é bem assim.
Se por um lado essa situação pode ser favorável à criança, embora com ressalvas,
sob outro aspecto, impraticável e inviável para muitas mães. Isso envolve
vários fatores: questões financeiras, conjugais e também demandas ligadas à
realização profissional feminina e pessoal e por que isso deveria ser
irrelevante? A responsabilidade geralmente fica por conta da mãe. A sociedade e,
inclusive a própria mulher cobra de si mesma um cuidado e uma dedicação particular
ao filho somado à culpa que ela mesma alimenta, por pretender voltar a
trabalhar ou ser obrigada a deixar seu filho sem os seus cuidados exclusivos.
Parafraseando um autor que trabalhou muito a
relação mãe-filho, o pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott (1896 –
1971), que dizia que uma “mãe
suficientemente boa” já faz o bastante (1).
Muitas
vezes em atendimento recomendo que algumas mulheres retornem logo ao seu ritmo
de trabalho, simplesmente porque acabam deixando a criança mais neurótica, não
por intenção, evidentemente, mas inconscientemente essa relação acaba ficando
simbiótica além do previsto, sufocando-a com uma quantidade exagerada de
cuidados e preocupações comprometendo a relação que ao invés de prazerosa se
transforma em uma interação doentia. Não dá para ser mãe 24 horas por dia, essa
atuação desenfreada vai sair caro para a mulher, para a criança também haverá
prejuízos. É necessária que alguma coisa seja feita para contribuir para romper
essa simbiose e o retorno às atividades da mãe pode ser esse elemento curativo.
As
mães geralmente se sentem cansadas, desvalorizadas, injustiçadas com o papel social
imposto de que a responsabilidade de cuidar e educar sejam tão ou somente delas.
Precisam atender as demandas ininterruptas de suas crias, postergando desejos e
projetos para mais tarde ou, simplesmente ignora-los por completo; muitas abrem
mão de tudo pelos filhos e outras tantas se conformam com isso. Ônus da
maternidade?
Correm
o risco de repetir um velho chavão, talvez ouvido por elas de suas próprias
mães quando eram crianças, um modelo conhecido, porém equivocado que dizia: “dediquei
os melhores anos da minha vida aos meus filhos” ou ainda “abri mão de
tudo por eles” e isso, caso realmente vier à tona e for direcionado aos
seus filhos poderão receber uma resposta indelicada, ingrata, embora verdadeira:
“eu não pedi nada disso, você fez porque quis!” Pois bem, precisamos
assumir as consequências das nossas escolhas e caso optarmos por outras
alternativas não é justo compartilhar esse prejuízo com os outros,
especialmente os filhos.
Crianças
pequenas realmente necessitam de muitos cuidados e atenção, é uma tarefa que
precisa e deve ser compartilhada pelo casal, portanto, exceto em situações onde
essa possibilidade não existe, essa divisão nos cuidados com a prole deve garantir
que pelo menos essa carga não recaia exclusivamente sobre a mãe.
Alguns
planos realmente precisam ser adiados, transformados, reprogramados talvez,
quando o casal compartilha a tarefa de educar e cuidar de seu filho em comum
acordo, o desenvolvimento parental cresce e individualmente os dois
experimentam a satisfação de que entre erros e acertos, os esforços
direcionados à criança possibilitam que se transforme em uma pessoa capaz de
enfrentar seus próprios desafios, pois teve a oportunidade de conhecer pais
bons o bastante que permitiram sua
autonomia e independência.
O
psicanalista Bruno Bettelheim (1903 – 1990) adaptando o conceito de Winnicott
sobre esse viés comenta: “para se criar bem um filho, não devemos tentar ser
um pai perfeito, assim como não devemos esperar que nosso filho seja, ou venha
a ser, um indivíduo perfeito. A perfeição não está ao alcance do comum dos
seres humanos. Os esforços para atingi-la entram tipicamente em choque com a
indulgência com que devemos responder às imperfeições dos outros, inclusive as
de nosso próprio filho, único elemento capaz de tornar boas as relações humanas
possíveis. É provável, no entanto, que nos tornemos um pai bastante bom – isto
é, um pai que cria bem seu filho. Para realizar isso, os equívocos que cometemos
na criação de nosso filho – erros muitas vezes feitos em virtude da intensidade
de nosso envolvimento emocional com ele – devem ser mais do que compensados
pelas muitas instâncias nas quais agimos acertadamente em relação a ele”. (2)
Mesmo
quando a criança rejeita a mãe, quando esta vai ao seu encontro depois de um
dia de trabalho, não significa que o filho a ame menos, mas sim que não
suportou a sua ausência e expressa essa raiva dela rejeitando-a. Já presenciei
muitas cenas que as mães realmente sofrem com esse desprezo e até se deixam
intimidar pelas atitudes grosseiras de seus filhos que as repelem com
agressividade, quando talvez a conduta mais adequada fosse aproveitar essa
situação e esperar até que essa raiva se dissipe e a criança reconheça a mãe
amorosa que voltou.
Não cabem explicações e desculpas: - Mamãe
teve de trabalhar para ganhar dinheiro! Ou ainda: - Olha que presente lindo que
eu trouxe pra você! Em uma disfarçada justificativa de que a criança a perdoe
por ela ter de fazer aquilo que ela precisava ter feito e que fará também no
dia seguinte.
A
postura é o maior alicerce que se pode oferecer e para a criança basta a
confiança, se a mãe lhe diz: - Mamãe vai trabalhar e depois eu volto! E
realmente ela voltará, isso é o suficiente. Excesso de justificativas,
desculpas e explicações não ajudam em nada e só servem como uma dissimulação
para diminuir a culpa. Afinal, que tanta culpa é essa que muitas mulheres
carregam dentro de si, por precisarem se afastar um pouco de suas crias, para
trabalhar fora de casa? Comparativamente essa mesma situação raramente afeta os
homens.
Nesse
pacote da culpa somam-se algumas coisas que devem ser questionadas, por
exemplo, nos casais em que existe a figura do pai, caso este não se ofereça, recomendo
que seja convocado pela mãe o mais rapidamente possível. Atualmente essa
parceria vem acontecendo naturalmente, o que é muito saudável, mas o padrão
machista ainda é comum. Nesses casos, costumo perguntar para alguns pais/homens
se esperam receber pelo correio uma carta de convocação, um pedido solene para
assumir seu filho ou consideram que essa não seria uma tarefa adequada,
pertinente ao sexo masculino? Pode ser engraçado, mas muitos parecem mesmo aguardar
um pedido semelhante, não se manifestam espontaneamente, somente por uma
demanda externa. Isso é um erro, não se deveria esperar que as coisas desabassem
para se tomar uma providência e as mulheres certamente agradecerão muito essa
iniciativa que deveria a princípio, ser feita naturalmente, mas caso isso não
aconteça as mães devem solicitar, ou melhor, convocar essa participação, isso faz
muito bem para o casal. E é bom que fique claro: o filho e as responsabilidades
inerentes, são de competência do casal.
Não
é justo que durante o dia a mãe cumpra o seu papel zeloso e contínuo e à noite
essa tarefa continue sendo sua responsabilidade. Esse plantão noturno pode e
deve ser também uma tarefa compartilhada com o pai da criança. Para tanto tem
de haver dedicação e compromisso verdadeiro, não adianta a criança chorar à
noite e ao atende-la a boa vontade do pai termine rapidamente reconvocando a
presença da mãe com a desculpa de que “a única que pode fazer com que a
criança se acalme e pare de chorar é a mãe”; afinal se o filho é de ambos,
esses momentos também precisam ser divididos. Ao atender à criança, o pai poderia
responder: - Eu estou aqui! E essa postura deveria bastar para tranquiliza-la.
Se isso não surtir efeito das primeiras vezes convém insistir e treinar.
Entendo
e sei, por experiência própria, que nem sempre é assim que acontece, mas
realmente funciona melhor quando essa atitude é verdadeira e quando o pai se
esforça e toma para si a tarefa de coeducar o filho do casal, que é o seu filho
também, até durante a noite, mesmo atrapalhando seu sono. Isso também faz
parte.
A
mãe precisa abrir mão desse poder centralizador, por mais que em alguns casos
duvide dos talentos do marido em relação aos cuidados com seu filho. Precisa e
deve “passar a bola” ao companheiro que terá sua chance e ao seu modo se
aventure livremente nessa tarefa de cuidar da criança, afinal quem além da mãe
seria a pessoa mais adequada do que o próprio pai para aquietar a criança?
Diferente no manejo, menos participativo no cotidiano, inexperiente e talvez
até inábil, mas adequadíssimo para a função de cuidar do filho. Com treino e
persistência mesmo os mais desajeitados dos pais aprendem as tarefas mais
simples e assumem junto com as mães os cuidados com seus filhos. Essa função é
do casal, não se pode transferir tampouco adia-la. Criar uma criança precisa de
tempo, paciência, dedicação, vontade, coragem também, mas sobretudo amor.
Desse
modo, nessa retomada da vida e dos projetos do casal, onde ambos: homem e mulher,
tem assegurado o seu próprio desenvolvimento individual e agora também
familiar, podem contar um com o outro na criação do seu filho.
A
possibilidade de escolher um lugar adequado para a criança ficar enquanto os
pais trabalham passa a ser uma tarefa compartilhada. A sensação de abandono, o
remorso de deixar a criança pequena na creche, podem também ser divididos pelos
pais, que dividem essa escolha e assim se estruturam e repartem a tarefa que
decisões desse tipo costumam trazer. Melhor dividir por dois ao invés de apenas
um assumir a responsabilidade, tendo em mente que o filho é de ambos.
Sobre
a importância das primeiras experiências que a criança recebe de seus pais, o
psicanalista Bruno Bettelheim ensina: “outra indicação de que uma criança ter
sido bem criada é sua capacidade de enfrentar razoavelmente as infindáveis
vicissitudes, as muitas agruras e as sérias dificuldades que, muito
provavelmente, encontrará pela frente e fazer isso sobretudo porque se sente
seguro. Embora nem sempre livre de dúvidas sobre si mesmo”.
(1) OS BEBÊS E SUAS MÃES / Donald Woods Winnicott – [tradução
de Jefferson Luiz Camargo] - São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1988.
(2) UMA VIDA PARA SEU FILHO
– Pais bons o bastante / Ajude o seu filho a ser a pessoa que ele deseja –
BRUNO BETTELHEIM [tradução de Maura Sardinha e Maria Helena Geordane] – décima
oitava edição – Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1989.
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Dr José Carlos Machado
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