Pesquisar este blog

terça-feira, 30 de abril de 2013

O SOL E O VENTO - conto


O Sol e o Vento apostavam
qual dos dois era o mais forte
e qual dos dois retirava
de um viajante o capote.
Primeiro soprou o Vento,
mas era em vão que soprava,
pois o homem, friorento,
mais seu capote fechava.
Então o Sol resplendente,
seus doces raios lançando,
veio aquecer lentamente
o homem que ia passando;
o qual em dado momento,
se despojou do capote,
revelando ao Sol e ao Vento
qual dos dois era o mais forte.


Fábula de Esopo

Fábulas de Esopo

O RATO DA CIDADE E DO CAMPO - conto




Um rato da cidade, tendo saído a passeio, encontrou um rato do campo que o regalou com bolotas, cevada, nozes e tudo o mais que houvesse. O rato da cidade, porém disse: "Tu és um rato pobre; por que queres viver assim na miséria? Venha comigo! Terei prazer em arranjar, entre as mais deliciosas iguarias, o bastante para nós dois. Nunca vistes nada parecido".
O rato do campo ficou muito admirado e quiz conhecer de perto essas maravilhas prometidas e mudou-se com o outro para uma esplêndida e linda casa, onde o rato da cidade morava. Foram ambos até a dispensa, onde havia pão, carne, toucinho, linguiça em abundância e, sobretudo queijo. Disse então o rato da cidade: "Agora, come e fica à vontade! Iguarias deliciosas como estas tenho com fartura todos os dias". Nisto vem o criado e faz barulho com as chaves na porta. Os ratos assustados, puseram-se em fuga. O rato da cidade achou logo o seu buraco, mas o rato do campo não sabia para onde ir e subia e descia pela parede e mal teve tempo de salvar sua vida, escapando por um triz. Depois que o criado saiu, o rato da cidade disse: "Não há mais perigo nenhum, fiquemos à vontade!" O rato do campo, porém respondeu: "Para ti é fácil falar; sabias como achar o teu buraco, enquanto eu morrendo de medo, quase que não escapo com vida. Vou dizer qual a minha opinião: continua sendo um rato da cidade, a devorar linguiças e toucinhos e todas as suas delícias! Quanto a mim, quero continuar um rato pobre do campo e voltar a comer minhas bolotas. Em momento algum estarás a salvo do criado, dos gatos, das ratoeiras e toda essa casa linda é tua inimiga, eu porém onde moro, estou livre e em segurança no meu modesto buraquinho no campo".
E foi embora pelo mesmo caminho que veio e continuou assim até o fim dos seus dias, mas parece que o rato da cidade não teve a mesma sorte.


Fábulas de Esopo.

CONTOS DE GRIMM - Ana Maria Machado (seleção e tradução)







CHAPEUZINHO VERMELHO  e outros Contos de Grimm
seleção e tradução de Ana Maria Machado
ilustração de Ricardo Leite
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986 - terceira edição - 98 páginas.

A escritora Ana Maria Machado selecionou e traduziu dez contos clássicos dos Irmãos Grimm, nessa coletânea que apresenta além da clássica e muito conhecida Chapeuzinho Vermelho (com dois finais diferentes), outras não tão divulgadas, mas que certamente irão encantar às crianças, como Jorinda e Joringel ou As três folhas da serpente. Os contos de fada possuem em sua essência algo de maravilhoso e estruturador que permite que muitos conceitos e valores ético-morais possam ser transmitidos às crianças de uma forma simples e sincera. Deveriam fazer parte do ritual da criança, por exemplo antes de adormecerem, pois as imagens fantasiadas e as aventuras ouvidas favorecem um sono mais tranquilo e reparador.

José Carlos Neves Machado - médico escolar. 

O VELHO AVÔ E SEU NETO - conto



Era uma vez um homem que, de tão velho, mal podia andar.
 Seus joelhos tremiam, ele não via ou ouvia muita coisa e já não tinha nenhum dente na boca.
 Quando se sentava à mesa para comer, tremia tanto que entornava a sopa sobre a toalha,
 e um pouco de líquido lhe ficava saindo dos cantos da boca. O filho do velho e a nora sentiam
 tanto nojo que o forçavam a se sentar num cantinho atrás do fogão para comer e punham
sua comida em uma tigela de barro que mal dava para saciar a fome do pobre.
 Ele ficava ali sentado, triste, olhando para a mesa com os olhos úmidos.
Certa vez, suas mãos trêmulas não conseguiram segurar a tigela, que caiu no chão e se
espatifou. A nora o repreendeu rudemente, mas ele só suspirou, sem esboçar qualquer reação.
 Então lhe compraram uma tigela de madeira bem barata e esse passou a ser seu prato.
Certo dia, quando estavam sentados fazendo a refeição, o pequeno neto de quatro anos,
que estava sentado no chão, começou a juntar tabuinhas de madeira. 
“Mas o que você está fazendo?”, perguntou o pai do menino. “Ah!”, respondeu a criança,
 “Estou montando uma tigelinha, para papai e mamãe comerem nela quando eu for grande.”
O filho e a nora do velho então se entreolharam e começaram a chorar, imediatamente
 foram buscar o velho avô para que se sentasse à mesa com eles, e, daquele momento
em diante, ele passou a comer com eles e não diziam mais nenhuma palavra quando o
 velho entornava um pouco de comida.

Irmãos Grimm
Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos – tomo I (1812) – Jacob e Wilhelm Grimm – tradução Christine Röhrig – página 351 – Editora COSACNAIFY – São Paulo,2012)

segunda-feira, 29 de abril de 2013

MODA DA MENINA TROMBUDA - Cecília Meireles (poesia)






MODA DA MENINA TROMBUDA

É a moda
Da menina muda
Da menina trombuda
Que muda de modos
E dá medo.
(A menina mimada!).
É a moda
 Da menina muda
Que muda
De modos
E já não é trombuda.
(A menina amada!).


Cecília Meireles
Ou Isto ou Aquilo 
Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 1990.

A SENHORA HOLLE - conto






Era uma vez uma viúva que tinha duas filhas, uma bonita e aplicada e outra, feia e preguiçosa. Acontece que a viúva gostava mais da feia e preguiçosa e a outra tinha de fazer todo o trabalho da casa. Certo dia, a menina foi tirar água no poço, debruçou-se demais para puxar o balde e acabou caindo no fundo. Quando acordou e recuperou os sentidos, estava num lindo gramado com milhares de flores e o sol brilhava. Caminhou pelo gramado até se deparar com um forno repleto de pães. O pão gritou: "Me tire daqui, me tire daqui, senão vou queimar, já estou assando faz tempo!" A menina prontamente tirou o pão do forno e continuou caminhando até encontrar uma árvore carregada de maças, que pediu à ela: "Ei! me sacuda! Me sacuda! Minhas maças estão todas maduras!" Então ela sacudiu a árvore e as maças caíram como chuva e ela não parou de sacudir até não restar mais nenhuma na árvore. Depois seguiu adiante e acabou chegando numa casa onde morava uma velhinha dentuça que estava à porta. Temendo os dentes grandes da velhinha, ela quis fugir dali, mas a velha chamou: "Não tenha medo, boa menina, fique comigo e, se fizer o serviço direitinho, você vai passar muito bem. Só tem de cuidar muito bem da minha cama e sacudir muito bem o cobertor para que as penas voem, porque aí neva na terra. Eu sou a senhora Holle". Como a velha falou com carinho, a menina concordou e começou a trabalhar. Cuidava de tudo do jeito que a velha gostava e também sacudia o cobertor com força e em troca levava uma vida tranquila. Nunca ouvia palavras duras e comia carne assada ou cozida diariamente. Ficou assim durante um tempo com a senhora Holle, quando começou a sentir tristeza em seu coração e, ainda que ali fosse mil vezes melhor do que sua casa, ela sentia saudades. Então disse à velha: "Sinto saudades de casa e, apesar de passar muito bem aqui, não posso ficar por mais tempo". A senhora Holle disse: "Você está certa e, como serviu com tanta lealdade, vou levá-la para cima pessoalmente". Então conduziu a menina pela mão até um enorme portão, que se abriu. Assim que a menina passou por ele, uma pesada chuva de ouro caiu sobre ela e todo o ouro se prendeu em sua roupa e ela ficou dourada dos pés à cabeça. "Isso é para você, por ter sido tão aplicada e dedicada", disse a senhora Holle. Então o portão se fechou e ela voltou para a casa da mãe e por estar coberta de ouro foi bem recebida.
Quando a mãe ficou sabendo como ela havia chegado a tamanha riqueza, logo desejou a mesma sorte para outra filha e tratou de fazer com que ela também caísse no poço. A menina acordou no belo gramado e seguiu o mesmo caminho da irmã. Caminhou até deparar com o forno repleto de pães. O pão gritou de novo: "Me tire daqui, me tire daqui, senão vou queimar, já estou assando faz tempo!", mas a menina se negou, dizendo: "Não estou com a mínima vontade de me sujar!, e foi embora. Logo chegou à macieira, que pediu: "Ei! Me sacuda! Me sacuda! Minhas maças estão todas maduras!" E a menina respondeu: "Nem pensar. Não quero nenhuma maça caindo na minha cabeça", e foi embora. Quando chegou à casa da senhora Holle, ela não sentiu medo, porque já tinha ouvido falar de seus dentes grandes e logo se ofereceu para trabalhar. No primeiro dia, ela se esforçou e fez tudo que a senhora Holle pediu e quando a senhora Holle dizia alguma coisa, ela pensava no ouro que iria ganhar. Mas no segundo dia ela já começou a preguiçar, no terceiro, mais ainda e nem quis levantar cedo da cama e arrumou muito mal a cama da senhora Holle, nem chegou a sacudir o cobertor para que as penas voassem. Passou um tempo e a senhora Holle se cansou e acabou dispensando a menina preguiçosa do serviço. A feiosa ficou bem satisfeita, pensando que agora viria a tal chuva de ouro. Então a senhora Holle também a levou até o portão, mas quando ela o atravessou não foi uma chuva de ouro que caiu sobre a cabeça dela e sim um enorme caldeirão de piche. "Esse é o pagamento pelos seus serviços", disse a senhora Holle e bateu a porta. A menina voltou para casa toda coberta de piche e não conseguiu removê-lo enquanto viveu.

Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos  (1812) - Tomo I
Jacob Grimm e Wilhelm Grimm
ilustrações - J Borges
tradução - Christine Röhrig
pág. 132 - 134
Editora Cosac Naify
São Paulo, 2012.

O LOBO E OS SETE CABRITINHOS - (conto)





OS SETE CABRITINHOS
Irmãos Grimm *

Uma cabra era mãe de sete cabritinhos que ela amava muito e os mantinha protegidos do lobo. Certo dia, ao ter de sair para buscar alimentos, ela reuniu todos e disse: "Crianças queridas, tenho de sair para buscar comida, tomem cuidado com o lobo e não o deixem entrar. Prestem muita atenção porque ele costuma se disfarçar, mas é possível reconhecê-lo por sua voz rouca e sua pata preta. Tomem muito cuidado, porque, se ele entrar em casa, ele vai devorar todos vocês". Assim que ela saiu, o lobo se pôs diante da porta e chamou: "Crianças queridas, abram a porta para sua mãe, eu trouxe muitas coisas boas". Mas os sete cabritinhos disseram: "Você não é nossa mãe, a voz dela é fina e meiga, a sua voz é rouca, você é o lobo, não vamos abrir a porta". O lobo foi então até o armazém e pegou um grande pedaço de giz que ele comeu para afinar a voz. Depois voltou à porta dos sete cabritinhos e chamou com voz fina: "Crianças queridas, abram a porta para sua mãe, trouxe uma coisa para cada um de vocês". Acontece que ele havia apoiado a a pata na janela e, ao avistarem a pata, os sete cabritinhos responderam: "Você não é nossa mãe, ela não tem a pata preta como a sua. Você é o lobo e não vamos abrir a porta". O lobo então foi até o padeiro e pediu: "Padeiro cubra minha pata com massa fresca". Assim que isso foi feito, o lobo foi até o moleiro e pediu: "Moleiro, cubra minha pata com sua farinha branca". O moleiro não aceitou fazer isso, mas o lobo o ameaçou: "Se não fizer o que estou mandando, eu te devoro". Então o moleiro obedeceu e cobriu a pata do lobo com farinha, deixando-a branca como a neve.
O lobo voltou à casa dos cabritinhos e novamente bateu à porta, dizendo: "Crianças queridas, abram a porta para sua mãe, eu trouxe um presente para cada um de vocês". Os sete cabritinhos pediram para ver a pata e, ao verem que era branca como a neve e a voz era fina, acreditaram ser sua mãe e abriram a porta, deixando o lobo entrar. Assim que reconheceram o lobo, correram o melhor que podiam para se esconder. Um entrou debaixo da mesa, o segundo se enfiou na cama, o terceiro no forno, o quarto na cozinha, o quinto no armário, o sexto embaixo de uma enorme tigela e o sétimo entrou no relógio de parede. Mas o lobo encontrou e engoliu todos, menos o mais novo, que se escondera no relógio.
Depois de satisfeito, o lobo partiu. Logo em seguida, a cabra chegou. Que tristeza! O lobo tinha vindo e devorado suas amadas crianças. Ela pensou que todos estivessem mortos, quando o mais novo saltou do relógio da parede e contou-lhe como a desgraça acontecera.
O lobo, por sua vez , de tanto comer, deitou ao sol num gramado verde e caiu em um sono profundo. A velha cabra ficou pensando se não haveria  um jeito de ainda salvar os seus filhotes, então chamou o filho menor e disse: "Vá buscar linha, agulha e tesoura e venha comigo". Não demorou para encontrarem o lobo roncando no gramado. "Olha o lobo asqueroso deitado ali, depois de devorar os meus seis filhotes no lanche da tarde. Me passe a tesoura", disse ela e observou o lobo de todos os lados. Será que ainda estão vivos na barriga dele?, pensou e se pôs a abrir a barriga do lobo com a tesoura. Os seis cabritinhos que ele engolira por inteiro, durante a sua gula, saltaram alegres para fora. Ela então mandou que eles lhe trouxessem pedras bem grandes e as colocou na barriga do lobo. Depois costuraram para fechar e saíram correndo para se esconder atrás de uma moita.
Quando o lobo acordou, sentiu-se muito pesado e disse: "Na minha barriga tem um tum tum tum danado! Um tum tum tum esquisito dentro da minha barriga! Que será isso? Eu só comi seis cabritinhos" Então ele pensou em beber um pouco de água para ver se melhorava e foi procurar um poço. Mas, quando debruçou para beber, não conseguiu conter as pesadas pedras e caiu na água no fundo do poço. Ao verem o que tinha acontecido com o lobo, os sete cabritinhos se aproximaram correndo e, de tão alegres e aliviados  que estavam, dançaram festejando em volta do poço.

*
Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos - Tomo I  (1812)
Jacob Grimm e Wilhelm Grimm
ilustrações - J. Borges
tradução - Christine Röhrig
pág. 50 - 52
Editora Cosac Naify
São Paulo, 2012.

ANTOLOGIA POÉTICA - Cecília Meireles (resenha de livro)









ANTOLOGIA POÉTICA
Cecília Meireles
coordenação editorial - André Seffrin
Editora Global - terceira edição - 335 páginas
São Paulo, 2013

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil;
- Em que espelho ficou perdida a minha face?


Foi a própria autora que selecionou esses poemas que refletem as várias fases de sua poesia, que evidenciam  solidão, melancolia, tristeza e todo lirismo da grande poetisa. Cecília morreu cedo, aos 63 anos deixando uma obra muito apreciada pelo público e crítica. Fez parte da segunda geração modernista no Brasil e esse livro foi publicado inicialmente em 1963 e é considerado um precioso auto-retrato que reflete sua poesia intimista e reflexiva com profunda sensibilidade feminina que surge em seus poemas: "O pensamento é triste; o amor insuficiente; e eu quero sempre mais do que vem nos milagres. Deixo que a terra me sustente: guardo o resto para mais tarde" (Explicação - fragmento - pág. 51)
 
José Carlos Machado.
 

A HISTÓRIA DAS ALMÔNDEGAS - conto

Era uma vez uma cozinha num palácio, uma das mais grandiosas que o mundo já vira.
Havia panelas e frigideiras penduradas em todas as paredes e deliciosos ingredientes empilhados, esperando para serem preparados. No meio da cozinha havia uma enorme chaminé e sob ela um magnífico fogão de ferro.
Cinquenta cozinheiros trabalhavam dia e noite para preparar a comida para a mesa do rei. Havia tortas recheadas com carne de pavão, carneiros assados, churrascos e travessas e mais travessas de almôndegas, pois todos sabiam que o prato favorito do rei era almôndegas ao molho branco cremoso.
Um dos cozinheiros subalternos tinha acabado de preparar a última travessa de almôndegas. Ele abriu a grande porta de ferro do forno e inseriu a travessa. O prato começou a arder enquanto a gordura derretia e a temperatura subia. O calor se tornou cada vez mais sufocante e as almôndegas começaram a cozinhar. Elas gritaram para sua líder: "Socorro, socorro, faça alguma coisa, por favor, estamos sendo cozinhadas vivas! Faremos qualquer coisa por você, mas precisa salvar nossa vida!"
A almôndega líder, que era a maior de todas, ergueu-se o máximo que pôde e falou às suas companheiras almôndegas: "Tenham fé, ó almôndegas, eu as salvarei. Prometo que não serão cozinhadas, mas que a salvação chegará da maneira mais extraordinária!" "Qual será a nossa salvação, ó grande líder?" perguntaram as almôndegas. "Virá um remédio refrescante para aliviar suas queimaduras e uma cama perfumada para vocês deitarem e descansarem", respondeu a líder.
Nesse exato momento, a porta do forno foi aberta e um molho branco frio foi vertido sobre as almôndegas. Elas suspiraram de alegria e agradeceram a Deus por salvá-las do fogo terrível.
"Vocês não me escutaram, companheiras almôndegas", declarou a almôndega líder, "Pois prometi um remédio refrescante e, vejam só, ele chegou". Mas então o calor começou a aumentar novamente e algumas das almôndegas, aquelas mais perto da borda da travessa, foram assadas vivas. "Ó líder!", gritaram as outras, "Por favor salve nossa alma! Vamos segui-la até os confins da terra. Simplesmente nos salve deste calor horrível." "Fiquem calmas, minhas almôndegas. Acalmem-se e o fogo resfriará. Prometo a vocês!", disse a líder.
Naquele momento a porta do forno abriu novamente e a grande travessa foi cuidadosamente removida pelo cozinheiro. Ele a sacudiu um pouco para garantir que as almôndegas não estavam grudando no fundo e virou a travessa sobre uma camada de arroz cor de açafrão. O prato estava adornado com ervas e folhas perfumadas. As almôndegas foram transportadas da cozinha pelos corredores do palácio até a sala do trono, onde o próprio rei estava jantando com seus convidados.
As almôndegas não conseguiam acreditar na virada que houve na sua sorte."Eu disse a vocês que nossa má sorte se inverteria", declarou a almôndega maior. "Só precisam acreditar em mim, pois sou sua líder".As outras almôndegas teciam elogios enquanto se ajeitavam na macia camada de arroz. Subitamente o prato foi colocado diante do próprio rei.
Algumas das almôndegas foram ofuscadas pelo brilho das jóias no pescoço dos convidados e outras foram dominadas pelo som dos mísicos tocando sobre um tablado na sala.
Mas então a irmandade das almôndegas foi removida um punhado de cada vez, tiradas da travessa e servidas em pratos individuais. E, pior ainda, bocas famintas ao redor da mesa começaram a devorá-las. "Ó líder, nossa líder", gritaram as almôndegas restantes, "O que está acontecendo conosco? Nossas integrantes estão sendo selecionadas e da maneira mais chocante. Estamos sendo exterminadas".
O próprio rei enfiou um garfo na travessa e perfurouseis almôndegas de uma vez. "Traição!", gritaram as últimas almôndegas. "Como isso pode estar acontecendo conosco?" A essa altura, a almôndega líder estava farta de ouvir sobre os problemas que suas seguidoras almôndegas estavamencarando. Ela gritou para as outras: "Vocês foram refrescadas pelo molho branco medicinal, não foram?" "Sim, nós fomos", gritaram as últimas almôndegas que restavam. "E foram removidas do fogo terrível e colocadas sobre uma cama de arroz branco fresco e tranquilizante, não foram?" "Sim, nós fomos", disseram. "Bem, quando vão compreender que vocês são almôndegas e que estão destinadas ao estômago de homens famintos?"
Logo em seguida, a almôndega líder foi garfada e engolida inteira pelo rei. As últimas almôndegas na travessa continuaram a gritar, berrar e protestar sua recusa a serem comidas. Mas a essa altura já não havia mais ninguém para ouvir seus gritos. 
 
 
Nas Noites Árabes - uma caravana de histórias - Tahir Shah - Editora Roça Nova - pág. 325 - 327 - Rio de Janeiro, 2009.

ENTREVISTA - MEDICINA ESCOLAR




1.) De onde vem esse conceito de MEDICINA ESCOLAR?

Desde a primeira escola com base na pedagogia Waldorf, criada por Rudolf Steiner em Stuttgart em 1919, um médico (Eugen Kolisko - 1893 - 1939), já fazia parte do grupo docente. A ideia de MEDICINA ESCOLAR ou PEDAGÓGICA, como sugerem alguns, esta, justamente nessa cooperação do médico, nesse trabalho conjunto: médico/pedagógico, que pode, através de sua ótica médica, observar e contribuir com suas indicações para a criança e para a família, estabelecendo com o professor as estratégias necessárias ou possíveis para que aquela criança supere determinados problemas que atrapalham e impeçam seu pleno desenvolvimento.

2.) Por que um médico na escola?

O ambiente escolar na vida da criança é um lugar onde ela convive por muito tempo e onde, logicamente, surgem uma série de conflitos; a criança sai de uma socialização doméstica (pai/mãe/família)e vai, cada vez mais cedo, para uma socialização mais coletiva (escola), em um novo ambiente em que precisa lidar com suas próprias limitações e experienciar as frustrações que no ambiente doméstico/familiar era mais conhecido e naturalmente protegido, na escola isso é diferente, terá que dividir a atenção da professora com outras crianças e terá ela mesma que se fazer entender e ser aceita nesse novo grupo social, o que nem sempre é tranquilo. O papel do médico está, justamente aí, podendo observar e auxiliar nesses desafios, promovendo a superação e trabalhando junto com o professor estabelecer um elo de ligação da escola com a família, mas tomando o partido da criança, ou seja, ter um olhar e uma escuta para as dificuldades que ela apresenta frente aos desafios que a escola e os seus respectivos encargos agora representam e começam a fazer parte de sua vida. 



3.) Uma escola com um médico é melhor do que aquela que não possui esse profissional?

É importante realçar o papel do MÉDICO ESCOLAR, ele não está na escola para medicar ou examinar clinicamente as crianças, seu perfil deveria ser o de trabalhar a multidisciplinaridade, ou seja, muitas crianças são assistidas por muitos profissionais, o que é válido e pode ser interesante para elas, sob um determinado ponto de vista, mas se cada profissional ficar somente na sua função e não interagir com o outro, corremos o risco dela ficar dessassistida pelo excesso, em outras palavras, muita gente "mexendo" nessa criança e isso pode ser até iatrogênico; a promoção de saúde e, esse é o papel central do médico, harmonizar esses procedimentos e orquestrar esses encaminhamentos, de modo que houvesse uma integração, observando a criança como um todo e permitindo que mesmo com algumas (ou muitas) dificuldades que ela venha apresentar, poderá ter o seu desempenho às vezes até limitado, mas possível e, certamente, digno.
Então uma escola que contemple alguém com esse perfil, poderá oferecer um grande auxílio no desenvolvimento psico/social de seus alunos e contar com um parceiro junto à atividade pedagógica, colaborando com o aspecto pedagógico/curativo de seus alunos.

4.) O MÉDICO ESCOLAR prescreve remédios para os alunos?
É natural que o médico utilize medicamentos e podemos, quando preciso, lançar mão de um bom número de substâncias, importante também deixar claro que crianças doentes não deveriam frequentar a escola, mas existem outras situações em que outros "remédios" também podem oferecer um excelente efeito terapêutico, como os contos de fada; que podem exercer um canal de comunicação adequado às crianças que entendem sua linguagem e sua simbologia. Através da narrativa dos contos, a criança identifica na ação dos personagens e nos desfechos das histórias as situações que ela própria vivencia.
Para crianças pequenas os contos curtos e tendo anões, animais, fadas e princesas como personagens são bastante recomendados (contos dos Irmãos Grimm), mais tarde, outros contos mais elaborados e com uma carga emocional mais intensa (contos de Andersen e Perrault) podem ser trabalhados junto às crianças, os contos mitológicos (mitologia grega e nórdica) para as crianças mais velhas são também muito apreciados.

5.) A televisão é prejudicial para a criança?

Existem estudos que demonstram que muitas crianças ficam até seis horas na frente da televisão. Então, são seis horas na frente de um aparelho que lança imagens com um determinado apelo emocional que ela, simplesmente, "vai engolindo", junto com as imagens que vão preenchendo sua imaginação e fazendo parte de sua vida, essas informações que inundam a cabeça da criança não oferecem oportunidade de troca. Talvez seria interessante refletir se não haveria realmente nenhuma outra opção de entretenimento senão a televisão e mesmo os chamados desenhos educativos, são igualmente revestidos dessa carga emocional que a criança simplesmente introjeta e que acaba imitando e incorporando seus gestos, é comum que comecem a falar como os personagens e querer se vestirem como eles. Esse tempo à frente da TV anestesia muito a sua fantasia, a criatividade não encontra muito espaço, já que os desenhos e os personagens já se encontram prontos e definidos. Quando a criança ouve uma história através de um ser humano e não de uma máquina, permite que exista uma interação, a imagem que a criança cria em sua cabeça é totalmente livre e ela pode inventar o herói desse ou daquele jeito, incorporando feições e fantasias que, ao contrário do desenho animado, já vem pronto e "engessa" a sua fantasia.




6.) Qual a melhor idade para a criança ir para a escola?

Essa é uma decisão muito particular de cada família, mas considero interessante pensar que na dinâmica familiar atual onde, na maioria das vezes, o pai e a mãe trabalham fora de casa, a mulher fica com o ônus de ter de abdicar de suas atividades profissionais para ficar com o filho pequeno. Essa situação é muito variável, algumas mulheres conseguem "abrir mão" de seu emprego durante algum tempo, mas outras sofrem muito com isso e ficam ansiosas com o retorno às suas atividades profissionais o mais rápido possível. E nesse imbróglio todo encontramos a criança, algumas famílias optam por deixar seus filhos na casa das avós, outras preferem uma cuidadora que trabalhe em suas casas, a escola, ou o maternal para as crianças muito pequenas passam a ser opções cada vez mais recorrentes e que devem ser seriamente avaliadas pois se tratam de lugares neutros e que também podem ser úteis nessas situações. Crianças pequenas precisam de escolas adequadas e que disponibilizem de espaço e pessoas capacitadas, improviso nesses quesitos geralmente ocasionam muitos problemas, imagino que o melhor critério esteja ligado à confiança, ou seja, os pais e, sobretudo a mãe, precisa confiar seu filho a alguém que irá exercer a maternagem à criança, uma pessoa que cumpra a função materna em sua ausência, isso também é revestido de muitos sentimentos (culpa, desapego, frustração, raiva...) e nesse processo a família (pai/mãe) precisam permanecer juntos para que ambos possam se apoiar e suportar as implicações que irão surgir a partir dessa decisão.



7.) Qual a escola ideal para a criança estudar?

Essa pergunta, embora bastante comum, deveria ser respondida com outra pregunta: - O que os pais consideram como escola ideal? Pois, esse conceito pode adquirir muitos matizes, para alguns pais escola ideal é aquela que capacita a criança a ser um aluno bem informado e com muitas matérias oferecendo uma extensa grade curricular, permitindo ao educando uma capacitação técnica adequada, priorizando um desempenho racional, preparando-o para o vestibular e para uma futura universidade; outros pais almejam para seu filho uma escola que tenha um teor artístico mais evidenciado, permitindo que a criança possa desenvolver seus talentos de uma forma mais harmônica, respeitando o seu ritmo, priorizando dessa forma o lado mais emocional ou intuitivo; existem outras que mesclam as duas coisas, enfim existem várias opções e métodos pedagógicos. Então a escola dita como ideal fica muito no imaginário dos pais, em torno de sua carga projetiva, talvez esse adjetivo ficasse destituído de sua potência se optássemos em escolher a escola adequada para a criança, pois todas terão suas qualidades e apresentarão seus defeitos, cabendo aos pais adequarem suas expectativas em torno daquilo que o método pedagógico tem a oferecer, desse modo a criança poderá ser menos cobrada e a vida escolar possa ser revestida de situações mais confortáveis e as solicitações e desempenhos escolares possam ser justificados na medida certa. 


Dr. José Carlos Neves Machado - médico escolar

domingo, 28 de abril de 2013

ENTREVISTA - LIMITES





1.) Qual a importância do limite na educação do filho? Qual a consequência de crescer sem saber lidar com a frustração?
Não indicar para a criança até onde ela pode ir ou não, pode ser considerado tão nefasto quanto privá-la de alimento, tal é o prejuízo que a falta dessa demarcação clara e nítida significa para a criança. A criança que não aprende determinados valores dentro de casa (e a questão de limite é um daqueles fundamentais) e é muito importante quando experimenta isso com a família; caso contrário terá  a falsa impressão que o mundo foi feito para se adaptar às suas vontades, é o reizinho/princesinha mandão(ona) que acredita que pode tudo e sua vontade é mais importante que o resto.





2.) O senhor considera que existe uma inversão de valores atualmente, ou seja, a criança e o adolescente passaram a ser o centro da família e, como consequência, as fronteiras do respeito para com os mais velhos  e para com o outro, de uma maneira geral, foram perdidas?
 É comum nas minhas palestras algum saudosista reclamar que quando criança bastava o olhar do pai para que ele entendesse o que devia fazer e que hoje não tem a mesma sorte com os próprios filhos, então se queixa de que algo foi perdido; então também pergunto: - Mudou o mundo, ou mudamos nós? Na verdade ambos sofreram mudanças, a relação com os pais, atualmente, está mais tranquila e acessível, o que é muito bom, mas os papéis, algumas vezes parecem estar trocados: quem é o filho e quem é o pai? Talvez no tempo em que o pai bastava simplesmente olhar, a sua postura era digna e firme o suficiente que não precisaria de maiores sustentações, como é comum observarmos nos dias de hoje, onde os pais são conduzidos pelos filhos e tem um grande receio em frustá-los e deixam de estabelecer uma fronteira/limite muito simples e significativa, mostrando ao filho, principalmente com suas atitudes: "até aqui você vai, daqui para frente não!", ou seja, estabelecer um limite claro e que a criança entenda. 





3.) O exemplo dos pais é fundamental para ensinar limites? Em outras palavras, o discurso deve ser coerente com a ação? Como os pais podem equilibrar esse ponto tão difícil?
Quando falamos em limite para os filhos também deveríamos olhar para o nosso próprio umbigo, as crianças pequenas que idolatram quase que cegamente os pais, ainda não tem muitos argumentos para contestá-los e, geralmente aceitam as decisões dos pais, existe uma reverência amorosa que permite isso, mas elas crescem e começam a perceber que a postura dos pais é algo que eu chamo de "gelatiforme", então começam a testá-los, alguns mais, outros menos, mas acabam conseguindo o que querem. Muitos pais exigem coisas dos filhos e ameaçam com algumas punições que eles mesmo não tem capacidade de sustentar, as crianças sabem disso, na maioria das vezes, e acaba ficando um jogo de faz-de-conta: você finge que manda e eu finjo que obedeço e o desequilíbrio acontece e se perpetua até. É preciso que os pais pensem sobre isso, redimensionar aquilo que dizem à criança, mas aguentar também o que virá da parte dela com a frustração. Essa atitude precisa ser firme, não com brutalidade e mostrar para a criança que nem tudo é possível.




4.) Existem distúrbios psiquiátricos que levam a criança ou o adolescente a não ter limites? Quando desconfiar que pode haver um transtorno, uma patologia, por trás de uma desobediência contumaz e que pode ser um indicativo de procurar ajuda profissional?
A psiquiatria vem se dedicando a entender quando a desobediência passa dos limites do aceitável. Existe uma classificação de transtorno mental denominada Transtorno Opositivo Desafiador (TOD) cuja característica se manifesta na tentativa de desafiar as regras e os limites apresentados, como o próprio nome sugere, a criança se opõe às situações de controle e de enquadramento, reagindo e questionando-as. Outra classificação é o Transtorno de Conduta, onde as crianças não ficam somente na oposição e passam a exercer a ação de fato, ou seja "quebram" as regras, reagindo com mentiras ou ações mais exageradas, além do plano verbal (agressões, ataques de fúria, destruição...), alguns estudos sugerem que, especificamente, esse quadro na infância poderá se evidenciar na vida adulta em um quadro de psicopatia. Não existem estudos prospectivos a esse respeito, ou seja, não acompanharam crianças com essas características até a idade adulta, mas em  muitos psicopatas adultos foi observado em sua retrospectiva que apresentaram quando crianças um evidente descontrole em situações que se depararam apresentando nessas ocasiões total ou  grande dificuldade em aceitar regres e limites. 
Quadros de crianças com hiperatividade, tão comuns atualmente (5% de prevalência), devem ser observados como sendo uma dificuldade da criança perceber e se concentrar no que está passando à sua volta, então muitas vezes nem percebem os limites que são pedidos. Nos casos dos transtornos do espectro autista, a criança simplesmente, não reconhece as "pistas sociais" que indicam o que está ao seu redor, então suas ações ficam como que desconectadas com o que se processa.  Os transtornos do espectro da psicose podem aparentar "falta de limite", no entanto, diante de uma condição patológica, onde a criança está desorganizada no seu pensamento, não é incomum que ela se torne desobediente.
Em geral, quando a dificuldade de estabelecer limites e regras vai muito além do suportável é importante que os cuidadores procurem ajuda profissional neste sentido. Existem várias técnicas terapêuticas para isso (orientação de pais, psicoterapia individual e familiar, etc) e muitas vezes os psiquiatras especializados em infância e adolescência devem ser consultados na tentativa de excluir transtornos mentais relacionados, nas escolas que disponibilizam do acompanhamento de um médico escolar, esse profissional pode observar essas características e fazer as indicações pertinentes.




 5.) O que caracteriza a faixa dos primeiros sete anos em termos de desenvolvimento e comportamento?
 No primeiro setênio de vida, a criança passa por transformações importantes: desde o parto e o corte do cordão umbilical (que determina o primeiro limite de vida, quando se desvencilha fisicamente do corpo materno), depois da transição de aleitamento materno, a introdução dos alimentos sólidos, a descoberta do andar ereto e a conquista do espaço físico ela vai experimentando uma sensação de liberdade e de conquistar o mundo ao seu redor; isso é muito bonito de se observar, mas ela também precisa ser protegida e resguardada do mundo externo, isso nem sempre a agrada, porque é uma fase onde ela está voltada somente para si mesma e, como geralmente, não tem muito poder de argumentação, reage às contrariedades com choro e agressividade, mas espera também uma consequência, que muitas vezes não acontece e elas acreditam que é assim que as coisas funcionam: conseguem o que querem com choro, brigando ou batendo, até que alguém faça diferente e dê um limite, então ela reagirá do modo costumeiro mas sem o mesmo resultado; em determinadas situações quando essa polaridade é muito brusca, por exemplo "em casa tudo é permitido", mas na escolinha experimenta algo diferente, a professora impõe limites e não pode fazer tudo o que quer, isso pode ocasionar problemas em seu comportamento, principalmente quando esse antagonismo não é desfeito, "em casa é uma coisa e na escola é outra coisa", a criança não entende o mundo adulto, que é caótico e contraditório, então é preciso deixar claro para ela o que pode e o que não se pode fazer, não como uma regra dura, mas as consequências precisam ser experimentadas e não poupá-las sempre de tudo, isso sim é muito prejudicial ao seu próprio desenvolvimento bio-psico-social. 


6.) Quais os maiores desafios que os pais têm em relação a impor limites?
Penso que é quando os pais acreditam que podem continuar sendo bons pais mesmo dizendo não! Winnicott dizia com muita sabedoria que a mãe bastaria ser  "suficientemente boa", e isso já é tão difícil, então não é preciso complicar mais; não precisamos agradar sempre aos nossos filhos, oferecendo coisas para suprir certa culpa que nos permeia. Eu costumo dizer aos pais que "Ser pai é saber se tornar desnecessário", isso incomoda muitos porque acham que com isso os filhos não precisam mais deles, partem para um valor absoluto enquanto o caso se encontra no relativo, mas é preciso realmente que acreditemos que os filhos devem ser conduzidos ao mundo, da melhor forma que possamos orientá-los, devemos fazê-lo, isso significa que vão experimentar ouvir de nós muitas vezes a negativa, o limite, a frustração e, certamente, irão nos odiar por isso e esse é o maior desafio acreditar que com honestidade e através de amor fizemos essa condução da maneira mais digna e correta que estava ao nosso alcance, uma direção suficientemente boa.


7.) Como o filho costuma testar a paciência dos pais?
 Nesses 25 anos atendendo crianças e trabalhando com pais e professores, já vi muita coisa, lembro de uma história que ilustra bem isso: Fazia muito frio e o pai colocava o casaco na filha que não gostava e pedia outro, ele experimentou alguns, mas após um tempo desistiu e passou a vez para a mãe que experimentou outra tática, mas sem sucesso, o tempo passava e a criança precisava ir para a escola, os pais tinham de trabalhar, enfim era preciso andar logo com aquilo e no final houve a ameaça: "ou você coloca esse casaco ou vai apanhar!" A criança aceitou colocar o casaco, mas não o primeiro que lhe apresentaram e sim um outro que ela fazia questão e que o pai já havia oferecido. Quando chegam na escola os pais orgulhosos da filha contam como ela é determinada, a criança ouve isso tudo e assim que pode joga para longe o casaco e sai correndo na chuva...

8.) Qual a melhor linguagem e a técnica adequada à idade para se fazer entender? Como sensibilizar o filho?
 A criança entende a consequência de seus atos e espera isso quando os pratica, acontece que ela também aprende com muita astúcia a manipular o público em redor, então sabe que para conseguir alguma coisa do pai precisa disso e daquilo e da mãe de outro modo, isso é normal e todos são assim, acontece que existem situações que os pais tem posições muito divergentes e a criança percebendo isso utiliza essa "rachadura" a seu favor, é como se o pai falasse alemão, a mãe italiano e a criança só entendesse em japonês, precisa ter uma mesma linguagem, quando um dos pais ficar perdido, o outro o ajuda e não o contradiz, principalmente na frente da criança, então depois os dois, à sós, podem falar sobre isso e discutir qual a melhor maneira de agir frente aquela situação, em outras palavras, a dupla (pai/mãe) continua coesa. Um bom exemplo é a criança que não come e o pai não se importa muito com isso, mas a mãe fica muito preocupada e insiste nesse ponto suportando os gracejos e a pouca cooperação do pai, a criança que já não quer comer tem no pai um aliado e essa divisão acaba atrapalhando a relação desse trio com alguns desfechos desagradáveis e a criança dominando a situação; não importa quem está certo, mas o casal se distancia, se afasta muito um do outro e a criança percebe e domina a cena.



9.) Como agir quando o filho é muito rebelde e nada funciona? "Castigar" ou impingir sanções é recomendável? Se sim, quais o senhor sugere?

 Gosto de apresentar histórias porque elas falam de um outro modo trazendo uma imagem da situação e essa realmente aconteceu: "Uma vez uma criança estava jogando bola dentro da sala, era um menino muito voluntarioso e que tinha muita dificuldade em aceitar limites, principalmente de seus pais, o pai, inclusive era muito impotente nesse aspecto e o filho sabia disso, testava a paciência de todos; estávamos nós dois na sala e eu disse a ele que ali não poderia jogar bola, ele nem prestou atenção ao que falei e continuou jogando, tirei a bola e falei que daria a bola quando saíssemos dali e propus outras atividades, ele foi muito rápido, pegou a bola e chutou-a forte em direção à janela quebrando-a em mil pedaços e depois olhou para mim esperando minha reação provavelmente  imaginando a mesma resposta que experimentava com o pai. O caminho que pensei em fazer foi o de reconstrução e sem dizer uma palavra peguei a mão dele e o levei até a vassoura e a pá, varri os cacos do chão, pois considerei perigoso para uma criança tão pequena manipular o vidro quebrado, poderia se machucar (devia ter uns 5 anos), pedi que segurasse a pá, mandei-o pegar o latão de lixo que ele trouxe arrastando-o até lá, mas queria sair dali, precisando que eu o segurasse pela mão dizendo que ainda teríamos muito trabalho pela frente; ficou comigo quando telefonei para a vidraçaria e encomendei outro vidro, que também medimos junto à janela quebrada e no dia seguinte pedi ao pai que fosse buscá-lo mais cedo e que ele acompanhasse todo o processo de recolocação do vidro, inclusive ajudando com a massa. Logicamente que isso não resolveu completamente a grande falta de controle e dificuldade de limite que o garoto tinha, mas acredito que pela primeira vez ele experimentou algo desse tipo, não foi preciso gritar, nem bater, nem ameaçar e o mais engraçado é que a cobiçada bola ficou do lado de fora do jardim, esquecida, enquanto o menino ficou entretido com essa reconstrução. Encorajei os pais que experimentassem outras ações semelhantes no dia a dia.

10.) O que caracteriza a faixa etária dos 07 aos 14 anos em termos de desenvolvimento e comportamento?
A criança já tem um grau de argumentação maior e exige dos pais uma postura mais firme ainda, então aquela criança que já experimentou certa firmeza anterior sabe com quem está lidando, mas aquela que continua sem saber qual o seu papel, a partir do segundo setênio adquire novas e mais robustas justificativas para conseguir aquilo que quer, já não fazem a mesma birra de antes, com choro e encenações, mas continuam testando a paciência e pedindo dos pais um controle, uma direção, uma rota, porque estão perdidas e reconhecem os pais perdidos também o que é péssimo para essas crianças.  



11.) Quais os maiores desafios que os pais têm em relação a impor limites nessa fase de vida? 
Nessa fase algumas situações também se sobrepõem, por exemplo, os argumentos e a própria vida social da criança também se transforma e novas combinações precisam ser re-adequadas, alguns ajustes, portanto, entre os pais e os filhos devem ser avaliados, isso acontece nos acordos em relação aos horários e às tarefas que a criança tem que cumprir e na vida dentro de casa uma questão pertinente é deixar claro qual o papel da criança dentro daquele núcleo familiar? Quais são as suas obrigações, em que ela, criança, colabora com a família? É responsável pelas suas coisas (roupas, brinquedos, material da escola, jogos, pertences)? Ajuda em que na rotina da casa (arruma a sua cama, tira os pratos de cima da mesa, cuida dos bichos da casa, ajuda na arrumação da mesa, lava a louça)? 
Colocar essas tarefas, mostrar que a família também conta com sua colaboração, auxilia muito nessa tarefa de deixar os limites mais definidos para a criança.

12.) Como o filho costuma testar a paciência dos pais?
Novamente sempre que uma situação se torna desconfortável é bem provável que a criança se rebele e teste a paciência dos pais se recusando, por exemplo a colaborar com as tarefas da casa, que a partir dessa idade deveria fazer parte também de suas obrigações, mas cabe aos pais que tomem uma atitude firme perante essa resposta, ou seja, se para essa família é importante que todos colaborem, as crianças também deveriam ter sua participação, evidentemente dentro de suas limitações, não se trata de uma apologia ao trabalho infantil, mas arrumar a própria roupa, cuidar de seus pertences (incluindo brinquedos e material da escola), colocar o prato e a xícara na pia da cozinha ou ajudar na preparação da mesa, isso ajuda a criança a entender que faz parte de um contexto familiar e que sua participação é necessária, mas isso precisa ser cobrado pelos adultos.


13.) Qual a melhor linguagem e a técnica adequada nessa idade para se fazer entender? Como sensibilizar o filho?
Muitas vezes perdemos muita força quando confrontamos com a criança e ficamos "brigando" em impor as nossas decisões, seria mais fácil se tivéssemos a tranquilidade necessária para colocar claramente a nossa decisão e não perder um tempo precioso com muita verborragia, que, na imensa maioria das vezes, serve somente para convencer a nós mesmos que estamos certos.
A sensibilização não deveria ser motivada pela culpa, ou fazendo a criança acreditar que cometeu um grande  erro, mas que, simplesmente, existe uma tarefa e que precisa ser feita por ela e a expectativa é que seja realizada

14.) Como agir quando o filho é muito rebelde e nada funciona? "Castigar" ou impingir sanções é recomendável? Se sim, quais o senhor sugere?
Quando as regras são quebradas é preciso que alguma coisa também seja "quebrada", quando isso fica claro e evidente para a criança ela entende, agora fica muito difícil entender quando as respostas são confusas e cada vez a criança experimenta uma sensação, às vezes com força, outras com passividade, então não se compromete, não se envolve...
Os adultos muitas vezes prometem castigos e punições que estão longe de aplicar e as crianças entendendo essa dificuldade, utilizam essa situação para fazerem exatamente o que querem, sem preocuparem-se com algum tipo de retaliação, então não se comprometem e esse jogo se mantém, como se os pais dissessem para o filho: "finge que obedece e eu finjo que mando em você".

15.) O que caracteriza a faixa etária dos 14 aos 21 anos em termos de desenvolvimento e comportamento na sua opinião? 
O jovem nessa faixa etária experimenta três grandes perdas ou lutos psíquicos: primeiro é a constatação de que já não é mais um menino(a), mas ainda não é um homem(mulher), há um luto do seu corpo infantil,  com as transformações físicas, hormonais e sexuais que o jovem experimenta e parece que não cabe mais naquele corpo; outro luto é a representação da imagem dos pais, pois constatam que aquela imagem idealizada não é verdadeira, "os ídolos tem os pés de barro", por assim dizer, isso também se constitui em uma perda, em uma nova elaboração da imagem arquetípica dos pais, descobrem que eles tem defeitos, mentem, falam coisas e na hora de agir, agem de outro modo, muitos confrontos surgem então a partir dessa constatação e o terceiro luto é a incógnita de sua própria identidade, afinal o que o futuro lhes reserva? Para onde irei, o que vou fazer da vida? Esses questionamentos permeiam a cabeça e o imaginário desses jovens nessa faixa etária.
Essas questões trazem evidente desconforto e movimentam um novo rearranjo na dinâmica familiar.

16.) E agora, quais os maiores desafios que os pais têm em relação a impor limites a esses jovens? 
O jovem questiona os pais e muitos tendem a se isolar, o que é comum, rompem com os padrões familiares para reconstruir a sua própria identidade, os pais se esquecem que devem ter agido exatamente assim nessa fase de vida. Algumas pessoas definem essa fase como "aborrecente", o que é, a meu ver, uma definição equivocada, porque o adolescente se encontra em uma fase de transição, muito difícil inclusive e o grupo de amigos tem uma influência muito grande e não seria realmente producente que a família também o afaste, talvez uma atitude mais coerente seja permanecer próximo, mostrando disposição em ajudá-lo a superar suas dificuldades. Definir o jovem como simplesmente "uma pessoa que não sabe o que quer" e demonstrar  impaciência e descaso pelo que está passando, não parece ser a melhor opção ou ter alguma chance maior de aproximá-lo e fazê-lo confidente de seus problemas, isso geralmente os afasta mais ainda.



 17.) Como o filho costuma testar a paciência dos pais?
Depois de muitos anos de convívio é natural que os filhos saibam "apertar adequadamente os botões dos pais", ou seja, vão adquirindo um conhecimento do que pode ou não pode ser feito e também o que os irrita ou não e como parecem ser hábeis nessa função...cabe aos pais não caírem nessa armadilha.

18.) Qual a melhor linguagem e a técnica adequada à idade para se fazer entender? Como perceber que o filho está crescendo e já não é mais criança?
Lembro de uma história que  ilustra bem essa ideia da dificuldade que os pais tem em adiar que os seus filhotes saiam do ninho: 
"Uma mamãe pardal estava preocupada porque os filhotes ainda não haviam saído do ninho e resolveu ensiná-los a voar, então levou-os para a floresta e lhes disse: - Hoje vocês aprenderam a voar, já passou da hora de saírem do ninho e precisam agora se virar sozinhos! , - Mas e se os caçadores nos virem?, disse um deles; - Vocês terão tempo de se esconderem. Disse a mãe. - Mas e se estiverem com uma flecha no arco, irão nos acertar!  Disse outro filhote; - Mesmo assim, vocês terão chance de se esconder até que ele faça a mira e acerte vocês. - Mas e se tiverem uma pedra escondida na mão?, Falou o terceiro filhote. - Vejo que vocês já são bem sabidos! E foi embora".


19.) Como saber quando o filho tem condições de enfrentar o mundo fora de casa? O que o senhor sugere?
Ser adulto, se transformar em alguém que seja responsável por suas atitudes é algo que o jovem deve aprender dentro de casa, suas ações tem uma consequência  social, tem um peso moral, agir no mundo significa que é preciso respeitar as regras e os valores, ensinar que os nossos limites terminam onde começam os limites dos outros, também significa que as posições e as opiniões dos outros, por mais incompatíveis que sejam comparadas com as nossas, devem ser respeitadas e ter o mesmo peso, esses valores são experimentados dentro de casa.
É comum hoje observarmos certo adiamento nas tarefas que são esperadas que os adultos exerçam, então é comum que o jovem, mesmo depois de formado e trabalhando, continue morando na casa de seus pais, continuando a usufruir de todos os benefícios que essa situação propicia, mas sem querer (ou ser cobrado), do ônus que isso requer, em outras palavras, qual o motivo dessa prorrogação em fazer parte da vida adulta? Muitos moram na casa dos pais objetivando economizar dinheiro para adquirir bens, outros se acomodam na vida de "filhinhos desprotegidos" adiando o voo para fora do ninho seguro e protetor e alguns se acovardam diante das dificuldades que a vida adulta exige e continuam infantilizados.
 Aos pais cabe a tarefa, muitas vezes incômoda e desagradável de mostrar o caminho da porta de casa em direção ao mundo, não expulsando-os, mas encorajando-os a seguir adiante para que conquistem o seu espaço fora da casa de seus pais, a porta estará aberta, mas é preciso que seja demonstrado a esse jovem que é preciso ir em busca de sua missão, de seu trabalho, incentivar esse acovardamento projetando nos filhos o medo de que fracassem fora da tutela dos pais é tão nefasto como privá-los de andar com os seus próprios pés, esse é o maior desafio dos pais: encorajar e acreditar nas tentativas de seus filhos no mundo e também de tentar entender suas escolhas e, mesmo não concordando com elas, respeitá-las. Essa é a  tarefa e o grande desafio dos pais.




José Carlos Neves Machado - médico escolar.